sábado, 19 de outubro de 2019

Dois poemas sobre o rio



Inventário de um rio # 1

Às margens desse rio asfixiado
habitado pela merda expelida das casas
e o ácido excedente das indústrias
homens pararam por um instante –
testemunharam seus reflexos no espelho;
outros
velaram toda uma noite atrás de um peixe.

Nessas águas espessas
violentadas pelo óleo das auto-estradas
oprimidas pelo caldo dos bueiros
mulheres lavaram a roupa e as mágoas;
outras
se aliaram ao corpo do rio
para ajudar as flores a resistirem ao inverno
e os tomates a se rebelarem contra a seca.

Às margens desse rio viciado
picado pela agulha dos hospitais
assaltado pela indigestão dos restaurantes
meninos caçaram animais que por ali se aventuravam,
ou simplesmente ficaram ao vento –
que não tinha o cheiro
senão do campo que percorria.



Inventário de um rio # 2

1
Aquele havia sido o meu Eufrates.
Ainda que inexpressivo
– sequer constava no mapa –
não teria havido nada sem ele

(a água era tão pouca
e de tão má qualidade
– pombos sedentos agonizavam
às suas margens –
que nada sobrevivia em seu bojo
[além de vermes aquáticos
e caramujos da esquistossomose])

Aquele havia sido o meu Aqueronte.
Quando corria –
quase sempre estava engasgado
com o cadáver de um cão –
conduzia a inframundos
sobre o domínio de Hades

(pouca era a sua água
e de tão má qualidade –
espessa como a baba de um enforcado –
que ela se mostrava incapaz de refletir o céu
[senão simulá-lo
com um azul de olho vazado])

2
Aquele que havia sido o meu rio
se arrasta por galerias de concreto
– como um fantasma do Lete –
roendo pacientemente os pilares da cidade


Solidão

o homem na loja de conveniência
diante do freezer

(mais nada precisa ser dito:
sabemos que está de pijama
ou, pelo menos – percebe-se –
está com a roupa de dormir;

mais nada precisa ser dito:
escolhe – são duas ou três da madrugada –
o seu jantar: retira um enlatado
[confere a data de validade: faz uma careta
na certeza de não estar sendo observado])

de vez em quando
quando coça a cabeça
demonstra a dúvida que perpassa:
é tarde, a manhã já se insinua
que pesado, comer massa – ele pensa
e a cerveja, como está cara! – balança a cabeça

de qualquer forma
a forma com que vasculha as prateleiras
diz muito sobre ele: a palavra solidão
– ou uma que se assemelhe a ela –
deveria ser escrita nesse poema em alguma parte

(mais nada precisa ser dito:
o homem na loja de conveniência
diante do freezer
[são duas ou três da madrugada])


rafael nolli
17/10/19
11h08

quinta-feira, 17 de outubro de 2019

Curta-metragem


Ninguém na sala branca, apenas cadeira e mesa. A lâmpada acesa ilumina ninguém: patético brilho perdido por sobre as coisas frias e inanimadas. A fumaça de um cigarro deveria ser bafejada no cone que orna a lâmpada, para magicamente tornar o ambiente pesado, antes do “OK, gravando”.


O close retiraria dos olhos do ator o sumo da dor que ele deveria fingir sentir, sentado na cadeira que está amputada de seu complemento humano.

O script dava conta de um suspiro que moveria a fumaça como um soco, e salientava que haveria de ser um som não compreensível, ainda que sugerisse um nome de mulher.

Ninguém na cadeira. Ninguém na sala. A câmera – se estivesse ligada – captaria apenas mesa, cadeira e lâmpada. O ator, nesse exato instante, se tudo estivesse dentro do horário previsto, esmagaria o cigarro no cinzeiro com a fúria. Um close ampliaria o simbolismo mostrando o dedo (do torturador) subjugando uma coisa mínima e frágil. Depois, choraria. Quase em segredo, choraria (outro close faria mais uma vez o serviço).

Anotações no canto da página do roteiro davam conta de dicas para melhor ilustrar a cena. A lápis (canto superior esquerdo) se lê: “lágrimas que se sucedem quase que metodicamente, entrecortadas violentamente pelos fios duros da barba que brotava na cara, como espinhos”. Por aqui haveria um corte. A queda da lágrima deveria ser acompanhada pela câmera, até que o chão a recebesse como a um suicida do décimo quinto andar. Outro corte.

Voltamos – página dez – aos olhos ainda secos. A câmera observa um deles (o olho do torturador) de tal forma que o torna um espelho por onde reflete uma figura que adentra pela única porta – o torturado seria introduzido assim na sala (o reflexo nos olhos secos do torturador). Havia um quê de poesia nessas linhas do scripit, que evocavam belezas sublimes sobre como as unhas arrancadas eram maleáveis (mas isso jpa se encontra no final da página 13, início da página 14): metáforas poderosas estão encravadas aqui, página 13, por exemplo: “a sua voz entortava de tal forma que lembrava o canto de uma fera descontrolada”: a voz faz perguntas absurdas, exige a confissão.

A câmera deveria enfurecer-se, postar-se nervosa, como se a tortura ocorresse em seu interior eletrônico, e não no homem que deveria estar sentado na cadeira, iluminado por uma lâmpada fria, coberta de fumaça.

O cinegrafista deveria sentir nos próprios calcanhares os choques elétricos que eram falsamente aplicados nos calcanhares do homem amarrado, que se não fosse o atraso para iniciar as filmagens, estaria sentado na cadeira, retorcendo o corpo como um porco esfaqueado.

Se tudo estivesse ocorrendo como o combinado, e o atraso não fosse uma realidade para as filmagens terem se iniciado, o diretor haveria de interferir no ocorrido, perguntar se alguém havia presenciado uma degola de frango. Dizer que na infância vira uma pobre galinha correr sem cabeça por um minuto inteiro, o corpo sacolejado por estranhos espasmos que não eram enviados pelo cérebro; descreveria como certa vez viu a máquina (o corpo da galinha) lentamente se desfalecendo, pena a pena se eriçando. Empolgado, o diretor haveria de dizer que o olho do animal piscara por duas vezes, como se quisesse se certificar ser aquele corpo sem cabeça o seu corpo.

A equipe atordoada se perguntaria em silêncio: como extrair tal voracidade de um homem que apenas finge? Como, se não degolá-lo de verdade? O falso torturador parado diante do falso torturado: se olham pelos olhos dos personagens.

Página 15 do roteiro: abertura da imagem revelando o set vazio. Monólogo final.



Corta! 


domingo, 13 de outubro de 2019

Não tenho fotos de quando eu era criança



Não tenho fotos de quando eu era criança.
Talvez ainda exista algum foto da adolescência
esquecida dentro das gavetas da cômoda
ou perdida nas página de um livro.

Porém, não há nada nessas fotos da adolescência
– nada mesmo – que possa me interessar.
O que se vê, nesses registros da juventude –
são espinhas, que me envergonhavam
e um nariz torto, que era maior do que devia.

Não há como negar, no entanto, que sou eu
em uma versão inacabada, quase pronta;
Não há como negar, no entanto, que sou eu
(naquela foto) lutando contra as espinhas
e sendo derrotado por uma porção de hormônios.

Dos tempos de criança, nenhuma foto;
nem uma única foto!
Todas que consulto, é outra criança que se revela:
pequena, rechonchuda, com um sorriso na cara.

Em uma fotografia tirada na porta da casa de meus pais
– por exemplo –
se vê um menino segurando uma bola de plástico
vestindo uma camisa do Flamengo (modelo 1982)
quase com o umbigo de fora.

Definitivamente – não há dúvidas – não sou eu:
não tenho intimidade com a bola
(nasci com dois pés esquerdos)
e por nada nesse mundo – nada mesmo –
torceria para um time de futebol
(muito menos posaria com o umbigo quase de fora).

Que criança é aquela, suja de tanto brincar?
Ela tem o meu nome e talvez algum traço
– os olhos quem sabe, quem sabe a boca –
são bem parecidos com os meus traços atuais.

Mas isso pode ser uma simples coincidência
e as crianças – não restam dúvidas –
brancas, de classe média, privilegiadas
são sempre meio parecidas nessa fase.

Mesmo essa foto, no álbum que minha mãe preserva
(com a data precisa escrita a lápis em seu verso: 1982)
não é uma foto minha de quando eu era criança.



Que criança é aquela, então?




Araxá, 12 de Outubro de 2019