31/12/03
...e é, na
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Era preciso datar e catalogar as invasões bárbaras Descrever os saques, as pilhagens, fotografar o campo em chamas para delimitar novas fronteiras – esse meu mundo, sempre diminuindo! Ao norte, os planos vêm montados em asas de corvos O oeste, silente, se arma O sul, em marcha, rompe a campina próxima Uma gota de caos encharca o leste Perigo rondando Sempre Era preciso eternizar minhas mazelas, pois elas extravasam os limites de minha mente, e eis que meu corpo é muito pequeno para contê-las
31/12/03
...e é, na
...
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1 – os motivos
Sempre haverá um rompimento
ou discussão envenenada.
Por um momento, bem sabemos,
motivo é o que menos há.
Sempre haverá uma dor de perda
que só se perdendo para esquecê-la.
E há, sempre há, motivo obscuro
nunca suposto, jamais revelado.
Sempre haverá demissão inesperada,
concepção indesejada, inoportuna,
surgida em hora ingrata pela mão de sujeito
sem-nome, sem-vergonha, sem-cara.
(Nenhum que justifique ou que explique)
2 – a forma
É público, porém limpo –
outros verão o espetáculo,
não aqueles de apreço.
(Em casa, o sangue manchará
cortinas, desvalorizará o imóvel.)
É público, porém limpo –
outros verão o show, serão
aqueles que por um ou dois dias
deixarão de dormir,
beberão café em excesso,
terão um cigarro queimando os dedos.
Serão aqueles que esquecerão logo,
que comentarão via telefone,
especularão pela mãe – pobrezinha! –
e levarão o episódio às manicures.
É público, porém limpo.
Logo a ambulância fará o seu serviço
e a chuva ou as varredeiras, o seu.
(Em casa, o sangue entupirá
o ralo e excitará o cão.)
3 – o viaduto
a) Demolir seria insano, já que é via importante que oxigena o corpo da cidade. Demolir seria pôr fim a engenharia respeitável, amputando a paisagem. Bem sabemos que sempre haverá outros métodos a serem utilizados: a corda e a faca preenchem o cardápio.
Demolir seria insano, já que é veia vital que irriga o coração da cidade. Demolir seria incinerar o dinheiro do contribuinte, aleijando o cenário. Bem sabemos que sempre haverá outras formas convidando ao ato: revólver dormindo debaixo do travesseiro, mata-rato na prateleira final do supermercado.
b) Policiar se mostra inútil – seria o mesmo que montar base sobre os ossos dos cavalos ou à estátua de um elefante cinzento.
Policiar se mostra inútil, posto que se trata de região rica em possibilidades: os rios convidam ao afogamento e as margens barrentas à decomposição.
E quando tudo estiver sitiado, sobre a cômoda desaparecerá uma dezena de comprimidos da mãe.
4 – a rota
Nenhum semáforo que avermelhe
ou placa de trânsito que obrigue
(O sol
projetando a sombra)
Caminho pouco imaginativo
de paisagem em baixa resolução
(O vento
desmanchando o penteado)
5 – instante
Último pensamento
incapaz de
pela
dourando as
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Imaginá-lo pensando em um céu esterilizado, completamente desabitado, não é exercício de muita poesia. Não há poesia alguma em vê-lo esmagado pela solidão.
Seus planos sangrentos, encharcados de crueldade, nem devem ser mencionados. Nunca matará ninguém.
É tomado de pesadelos que acorda: seus projetos de esfaquear pelas costas, incendiar casa com gasolina, atropelar e fugir, nunca sairão do papel. Logo o sangue congela nas veias.
No fundo do poço o escape que lhe ocorre é cavar.
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M C Escher |
tela de Lorenzo Mattotti
Neruda voltou a ser o meu grande poeta. Não sei por que, mas vinha me afastando dele ultimamente, enquanto pensava comigo o quanto nos falta – para a nossa poesia – mais reverências a esse poeta. Isso é algo que me marca nesse ano, que foi, possivelmente, o ano que menos li em minha vida. Creio que o trabalho tenha me impedido de certos prazeres; logo o trabalho que é exatamente o que eu queria para mim. São coisas da vida. Ainda assim foi o ano em que li A Revolução dos Bichos, livrinho de meia dúzia de páginas que me marcaram como um coice, além de um certo Morravagin, de Blase Cendrars, que me impressionou bastante. Apenas uma releitura me permiti: Humano, Demasiado, Humano – o tio Nit continua entre as minhas prioridades.
Passando parte desse ano a limpo me vem à memória uma espécie de embrutecimento – deve ser a idade, ou algumas pedradas que caíram do céu. Não me lembro de ter chorado em cima da página de nenhum livro, derramada nenhuma lágrima sobre um poema – ainda que William Carlos Willians tenha me tirado o sono por um bom tempo; sequer de algum filme me recordo com olhos marejados: e foi um ano de bons filmes, dentre eles um Fellini visceral e um apaixonante Je vous salue Marie. Espécie rara, com certeza, esse embrutecimento.
Ainda nesse terreno, por vezes lodoso, outro número me assusta: escrevi, no máximo, uns cinco poemas. Disso eu não pretendo reclamar, porque venho planejando a muito condensar a minha obra, escrevendo só mesmo quando for inevitável. A blogosfera trouxe a liberdade de publicação e paralelamente disseminou uma cultura de leitura imediata e descartável. Isso nunca fez a minha cabeça – não acredito no poema eterno, romântico, que sobreviverá a morte do corpo físico do poeta e atravessará os séculos arrancando suspiros de donzelas, no entanto estamos vivendo um tempo de consumo imediatista em que o poema só vale enquanto é lido. Pior que isso só mesmo uma febre tifóide.
Escrever um verso semanalmente, religiosamente, nunca me pareceu exercício de grandes resultados. Com cinco poemas fecho o ano com um balanço positivo – ao menos são cinco poemas que me agradam, que sei que foram colhidos nas pessoas e não nos livros. Não que eu tenha algo contra o conhecimento livresco, mas reforço a minha visão de que poesia é um instrumento de transformação social, e não um bicho de laboratório, produto sintético, sem sangue e suor, que vive no dicionário esperando que venha um vulto sagrado para ordená-las magicamente. Buscar a qualidade e não a quantidade é uma meta que pretendo continuar seguindo, ainda que para isso tenha que deletar um poema por mês, ou abortá-lo semanalmente. E o povo, na rua, que passa por mim, trás consigo uma poesia inexplicável, pedindo para ser escrita.
Esse que seria o ano do Chico acabou me surpreendendo. Chico foi o que mais tocou na minha vitrola – sim, eu tenho uma vitrola – mas tive a minha fé renovada na guitarra elétrica. Culpa de uma epifania ao ouvir certa música do Sabbath, mais exatamente a grandiosa & wagneriana “Lonely is the Word”. No plano das realizações, seria o ano em que voltaria a tocar bateria e provavelmente montaria uma banda, deixaria a barba crescer e incomodaria os vizinhos com violentos golpes nos tambores. Nada disso ocorreu e nada mais me resta falar sobre esse assunto.
Duas estruturas não se abalaram em mim. E saio mais forte e confiante em minhas posturas ideológicas. Ateu, sim. Por mais que Isaías tenha me tocado com sua poesia, prossigo totalmente descrente e feliz com essa condição, ainda que tenha sido um período em que fui muito cobrado por isso. Comunista. E lamento por aqueles que não o sejam – o que poria as coisas em seu eixo mais rápido. Isso basta e diz tudo, o resto pode ser observado em meu livro Memórias à Beira de um Estopim. O lobo e o cordeiro comerão em um mesmo pasto, mas quem tornará isso possível será o próprio homem, esse ser pequeno e falível e não uma força invisível, infalível, abstrata. E terá, com certeza, gosto de aurora.
No campo do amor, continuo serenamente apaixonado, completando cinco anos de namoro, mergulhado em um relacionamento estável, construído em um solo seguro. Sem grandes discussões ou problemas de qualquer ordem, pretendo que assim se estenda pelo ano vindouro.
Esse foi o ano em que me formei. O pior dos três anos de curso. O que salva são os amigos que fiz, infelizmente distantes, a maioria em suas cidades natais. Foi o ano decisivo para fortalecer laços de amizade e para desmanchar aqueles que o nó já vinha se afrouxando. Fica uma saudade do clima e, sobretudo, das pessoas; a escola é o meu ambiente, é nele que me saio melhor e é dele que venho tirando o meu sustento, já que a poesia não vende, e o poeta valha menos que um zibazol. Apenas uma grande mágoa guardo da faculdade, mas sou prodígio em curar essas feridas – um pouco de tempo, merthiolate e Band Aid me bastam.
Por vezes foi um ano estúpido, ignorante. O predomínio da intolerância me tirou o apetite muitas vezes – um pouco de Voltaire, ou de humanidade faltou para os porcos que estão no comando. Diante da TV ou navegando pela Net me vi enfurecido com a estupidez dessa guerra no Iraque, sem propósito, essa matança que não respeita nenhum código, que vem marchando sobre o povo indiscriminadamente, apenas para alimentar uma república às portas da falência – a economia baseada na indústria bélica deve encontrar o seu fim, ou em breve o mundo será consumido por esse ódio. Temo muito que o ano de 2009 seja o ano em que veremos o maior dos massacres desse imberbe século – Israel com suas costas quentes invadindo a faixa de Gaza por terra, com o seu arsenal, seus tanques. Isso me causa arrepios. Espero sinceramente não ver isso.
Veremos o que será desse 2009 que começa com uma crise econômica que se arrasta pela Europa e pelos EUA e que pode estender os seus tentáculos sobre o nosso continente, que vem se transformando muito rapidamente, em diversos pontos para melhor – temos democracias em processo de solidificação, lideradas por presidentes atentos com os problemas sociais, em especial o caso da Venezuela e da Bolívia. Não nego que existam alguns erros, algumas falhas, isso é certo, mas ainda assim são os melhores que já chegaram lá: estendo essa visão ao Brasil.
Para finalizar, um sinal me parece muito bom. Esse ano se inicia com o aniversário de 50 anos da Revolução Cubana, um grande motivo para celebrar.
Uma abraço a todos e feliz 2009.
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