quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Memória



Nunca te esquecerei,
diz o amante ao objeto amado
ou os amigos que se separam
ou a mãe ao filho que parte
(uma viagem, a morte,
a roda do acaso)

E ficam nebulosos,
transportando a ideia
(única forma de não olvidar),
até que chegue o momento
de serem esquecidos –

ou transportados.







*

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Banquete dos mendigos

Reunião burocrática, às duas da tarde. 
Os mendigos sabiam a melhor hora para pedir esmola. Depois do almoço – dos outros – era prudente descansar: ninguém contribui com a fome alheia de barriga cheia.
Aos poucos foram chegando, de toda rua que desaguava na praça. Alguém sugeriu matar o novato, que esmolava com a foto surrada de um santo que ninguém conhecia. Os tempos não suportavam mais um naquele espaço. A comida era pouca e os poucos restaurantes guardavam os restos trancados a sete chaves.
Em roda, contabilizaram o prejuízo. Ninguém tinha mais do que precisava.

E caíram na gargalhada.

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Corpo



1
há dez anos os enlatados começaram a vencer. alguns objetos da cena – tv, telefone, vitrola, vídeocassete – já não se fabricam mais. foram suplantados pela concorrência ou sofreram saltos evolutivos – pouco lembram aqueles sáurios

um presente de Natal – de dez anos atrás – aguarda para ser aberto (ou enviado) e não será: tudo foi adiado para sempre

2
Em meio à mobília
diante da TV desligada
a dez anos, pelo menos

nenhum telefonema
nenhuma visita

Em meio à mobília
esquecida por uma década
dezenas de aniversários em branco
ceias de natal
diversas festas de fim de ano
reuniões do condomínio (centenas delas!)
bailes do Clube dos Aposentados
todos em branco

ninguém para reclamá-la
nenhum vizinho ou amante
que tenha dado por sua falta

sobre a cômoda, coberta de pó,
a caderneta de endereços
abarrotada de nomes

3
nenhum inimigo fiel e impiedoso para cobrar uma dívida, para esclarecer velha rixa ou perdoar uma rusga do passado                                                                      

ou um passante, incomodado com o fedor de seu cadáver, um voyeur acampado no edifício em frente, um ladrão sorrateiro. um filho

como um animal no meio da mais obscura floresta, na mais completa solidão

(lá fora a cidade fervilhante)


4
Quanto tempo terá resistido o cão
– desesperado e faminto –

após a morte da dona?






*

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Provedor-mor de defuntos e ausentes

______________para Jorge Vicente


1. Dinamene! Dinamene!

pouco importa o que move os cardumes
ou o que torna cego os peixes exilados
       nas cavernas

tudo se resume – questão primordial –
no que teria sido se o Mekong tivesse
engolido aquele calhamaço

2. Entre gente remota edificaram

, ou outra língua surgisse da espada & do fogo e nos entrasse pela boca, após ser roubada por algum Prometeu – por exemplo. Falar Falar Falar até que as chagas da garganta cicatrizassem & parassem de doer

, ou outro messias surgisse no lugar desse – ó pai por que me... Também velho & cego, como convém (um olho vazado em Ceuta) (Para que tantos messias, meu deus?) 

ou nenhum messias – e fôssemos mudos como as pedras

3. D. Sebastião

acaso o Mekong tivesse
engolido aquele calhamaço
ou o poeta tivesse sido vencido pelo nado

talvez em um laboratório
ou no canto d’algum pássaro
ou de empréstimo de outro reino
uma nova língua até nós caminhasse
com seu rastro de pólvora e sangue

quem sabe outro poeta se erguesse
– em uma manhã de nevoeiro –


no caso do seu fracasso?






*

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Elas herdarão o reino dos céus




crianças
algumas ainda muito pequenas
sem saber o que escrever
desenham corações & flores
nas bombas
que matarão outras crianças


____
Sobre a foto: Kiryat Shmona, ao norte de Israel, próximo à fronteira com o Líbano. Imagem registrada em uma segunda-feira, dia 17 de julho de 2006.








*

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Leitmotiv


¿que fazer com tão vasto dicionário
– repleto de palavras duras
– de ódio –
dessas que insuflam catástrofes
colocam matrimônios por terra
azedam festas de fim de ano?

¿que fazer desses socos
– possivelmente letais –
– & nunca postos em prática –
aprendidos na adolescência
com os filmes do Bruce Lee
com o quebra-pau na porta dos puteiros?

(tanto ódio guardado

& ninguém digno de merecê-lo)




*

sábado, 19 de julho de 2014

Demiurgo



Não pode haver pior momento
do que encontrar o poeta escrevendo
sozinho diante do computador
a mesa de madeira manchada
coca-cola, café, cocaína
e uma pilha de livros
quase todas roubados
espólios da biblioteca municipal
um enorme carimbo azul na folha de rosto

Não, não há pior momento
Algum glamour – romantismo tardio –
nos tempos da máquina de escrever
em uma sala mergulhada na penumbra
a fumaça do cigarro subindo, até a lâmpada
Tomado por uma tosse tuberculosa, tenebrosa
o som das teclas, toc toc toc
sem melodia possível

No pintor há algo de vivo no ato da produção:
o movimento do braço
a pose – geralmente falsa – diante da tela
Chegar de repente no ateliê
e vê-lo diante de uma bela sereia
dona de seios de curvas acentuadas
e notar uma mancha azul
ainda molhada, escorrendo no assoalho

Na música também há algo de belo
(no flagra da composição):
os músicos dedilhando as cordas
procurando, em meio a tantas notas, a provável
Talvez role alguma cerveja – ou outro aditivo –
e de repente se faça novos amigos
e se consigo um afeto, uma foda

Com o poeta não é uma boa hora
Não há pior hora, nem pior programa
Talvez algum que lhe equipare
(só que não):
como a reprise, na íntegra,
de um 0 x 0
em jogo sem importância
na primeira rodada
do Campeonato Estadual do Acre









*

sexta-feira, 18 de julho de 2014

Exercício de semântica



Uma calda espessa escorre
apagando a paisagem
o estranho molho molha
a cauda do camundongo
a fachada da sede do AA
a sede do camelo no Saara
a estampa do tecido do tudo
até que não sobre nada sobre nada


Faço um acordo com os deuses do sono

e acordo







*

sexta-feira, 27 de junho de 2014

Oceano

Imagem de Andreas Franke


Tudo é efêmero diante do mar
navegadores, sereias, tritões
o encanto dos celacantos
a cor dos corais        

Nada dura diante de suas dunas
grandes impérios, conquistadores
A memória não sabe nadar
sofre de enjoo, é presa fácil
em tempo de tempestade

Só pra nos lembrar
(que tudo é efêmero diante do mar)
o mar  o mar o mar
sobe as encostas
encharcando as nuvens


alterando a geografia do ar

Imagem de Andreas Franke

*

sábado, 31 de maio de 2014

Dois Poemas Um poema



1
Eu digo NÃO!
estar de acordo é acovardar
doença do caráter, falta de decoro:
é preciso ser obstinado em desobedecer

Aceitar tudo, calado
só para os que venderam a alma $
ou esqueceram o cérebro em casa –
levados aos montes pela correnteza
rio acima, rio abaixo
como cardume de peixes adestrados

Eu digo não e reconheço meus inimigos
ao vê-los gritarem SIM!, pelas praças!


2
Eu digo SIM!
Tudo que caminha, caminha para um fim
dos escombros da velha cidade
uma nova cidade
onde o povo ri duas vezes mais alto

As coisas estão aí para serem mudadas
the times they are a-changin

Regresso só para os amantes
que se frustraram
dando com a cara na murada
e os peregrinos exaustos da viagem

Eu digo sim!
e reconheço os meus inimigos
ao vê-los pintarem NÃO!, nas fachadas!








*

domingo, 11 de maio de 2014

A mãe de todos os homens

Cenas do templo de Ninhursag - arte sumeriana

O anúncio que leio sobre você não me diz nada
a respeito de suas felicidades domésticas:
é pequeno aviso para quem se habilite a chorá-la
até que as lágrimas salguem o café
ou que suspiros mais pesados
sempre uma ponderação
             sobre a nossa própria morte
apague todas as velas
e não reste nada a fazer além de sepultá-la.

É sucinto esse papel – que amanhã
irá embrulhar pernil e asa de frango –
ao convocar todos para o seu enterro:
sua mais importante data, a única que mereceu
ser impressa e divulgada (provêm disso
o batom nos lábios para receber as visitas
e o sapato novo,
agora incapaz de incomodar seus calos
                                             e joanetes).

Nada fala ele sobre as suas vitórias cotidianas –
a força com que suportou as surras do marido,
que vinha a cada dia com a mão mais dura e calosa:

os beijos alcoólicos
            que nunca lhe deram um orgasmo.

Nada fala sobre sua heróica forma de agüentar
a fome de seus filhos, comendo a terra da parede
os vermes e as lombrigas exaltadas
diante das propagandas da Coca-Cola
                                   & do Mac’lanche Feliz:

a lágrima nos olhos
            contrastando com a sede das bocas.

Talvez, em outra época,
no colo do socialismo,
seria uma estátua sua que ergueriam hoje na rua.
Essa mesma rua que tem o nome
de alguém que não lhe diz respeito
que lhe rouba um pouco por dia
               nos impostos, nas contas de luz     
                                                 e de água.

Uma estátua seria o seu destino
por arrastar cinco filhos
que nasceram um nas costas dos outros:

e lhe arrancaram com os dentes o bico dos seios;

– e lhe desgraçaram o ventre e as costas
            como a um campo cansado de produzir;

– e lhe tornaram velha antes do tempo
            com saídas noturnas, brigas de canivete
            notas vermelhas no boletim;

– e lhe adoeceram em doses homeopáticas
            ao se tornarem, a cada queda
            o pai que tinham, propenso a discórdia
            e ao grito incivilizado.

Nada me diz sobre a sua luta habitual
essa miserável advertência que me chega às mãos
que leio antes de correr os olhos
             pelas notícias do futebol
                        e a seção de quadrinhos.

Nada sei sobre o modo que lidou
com os amores de seu marido:
as damas do baralho
            e as senhoras dos prostíbulos
que comiam o pão de seus filhos
ou trocavam o leite extraviado
            por uma dose de Dry Martini.

Assim como nada sei sobre a sua resignação
ao lidar com seus próprios amores: a rádio AM,
de onde sabia dos que estavam amanhecendo presos
ou degolados e as conversas de feira
a propósito do podre na carne dos tomates
            e os mandruvás insurgentes na alface.

Se você havia depositado suas fichas no futuro
esperando uma mudança, eu pouco sabia; mal
consigo imaginá-la sonhando com algo de brusco
que finalmente inaugure
            o reino dos homens sobre a terra

(se sua aposta havia sido lançada
na faca cega da cozinha, na ingestão do mata-piolho
no salto pela janela, tampouco consigo saber).

Quase sinto o mundo
esse mundo em que vivemos
repelir você, varrendo para debaixo do tapete
sua vida feita de derrotas sucessivas –
para que na vitrine fiquem apenas
aqueles que entraram no ringue armados
donos de roteiros escritos a sangue
            lhes garantindo um futuro glorioso.

Esse papel que leio não passa de um monte
de palavras agrupadas em torno do objetivo
de esquecê-la de uma vez por todas.


Fecho o jornal e morro contigo.




* do livro comerciais de metralhadora