sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Corpo



1
há dez anos os enlatados começaram a vencer. alguns objetos da cena – tv, telefone, vitrola, vídeocassete – já não se fabricam mais. foram suplantados pela concorrência ou sofreram saltos evolutivos – pouco lembram aqueles sáurios

um presente de Natal – de dez anos atrás – aguarda para ser aberto (ou enviado) e não será: tudo foi adiado para sempre

2
Em meio à mobília
diante da TV desligada
a dez anos, pelo menos

nenhum telefonema
nenhuma visita

Em meio à mobília
esquecida por uma década
dezenas de aniversários em branco
ceias de natal
diversas festas de fim de ano
reuniões do condomínio (centenas delas!)
bailes do Clube dos Aposentados
todos em branco

ninguém para reclamá-la
nenhum vizinho ou amante
que tenha dado por sua falta

sobre a cômoda, coberta de pó,
a caderneta de endereços
abarrotada de nomes

3
nenhum inimigo fiel e impiedoso para cobrar uma dívida, para esclarecer velha rixa ou perdoar uma rusga do passado                                                                      

ou um passante, incomodado com o fedor de seu cadáver, um voyeur acampado no edifício em frente, um ladrão sorrateiro. um filho

como um animal no meio da mais obscura floresta, na mais completa solidão

(lá fora a cidade fervilhante)


4
Quanto tempo terá resistido o cão
– desesperado e faminto –

após a morte da dona?






*

Um comentário:

Gere Alves disse...

Poesia sempre. Continue firme.