segunda-feira, 26 de novembro de 2018

o que eles irão dizer?

Se eu morresse amanhã, viria ao menos
Fechar meus olhos minha triste irmã

Álvares de Azevedo


1.
o amigo
(se eu morresse amanhã)
com seus versos chorosos
tentará encher um livro de lamentos

o fracasso
– sócio fiel dos poetas –
o assolará, pondo fim a inspiração:

o  livro ficará meio cheio
ou meio vazio?

2.
os companheiros de bar
– um pouco menos que amigos –
(se eu morresse amanhã)
tentarão esvaziar uma garrafa
– do que há de mais forte –
mas a vida
– com as suas urgências –
ou a embriaguês
– com seus caprichos –
os levará antes à lona:

a garrafa ficará meio cheia
ou meio vazia?

3.
o pedreiro
que contraíra as suas dívidas
(se eu morresse amanhã)
não poderá contar com a grana
– a segunda parcela de três –
logo, outro telhado precisará de reparos
e ele seguirá sua sina

esse telhado, meio consertado
(se eu morresse amanhã)
será problema de um novo inquilino

4.
o gato
pouco ligará
(se eu morresse amanhã)
contando que outro dono
– outra mão, mais precisamente –
venha lhe reabastecer o pote de ração
(sempre meio vazio)

água não lhe importa:
beberá
– como de costume –
 na privada

5.
a amada
(se eu morresse amanhã)
depois do luto
há de se virar
– o tempo tudo remedia! –
 e preencherá de novo o coração
desde sempre
meio vazio




20/11/18


terça-feira, 13 de novembro de 2018

Achados & Perdidos

{...}

E as artimanhas do Destino ficam explícitas ao se analisar o contexto.

Funciona assim: um dia, uma mulher caminha pelas fileiras de um sebo. Os livros estão lá, esquecidos, surrados pelo tempo, cobertos de pó de diversas eras[1]. Há quem os compare com vinhos envelhecendo, maturando o sabor & a cor – outros, com a cachaça calibrando a embriaguês.




No meio de milhares de obras, a mulher puxa um exemplar aleatoriamente. Aquele não é o título que ela estava procurando – pega-o por impulso. Aquele não era o volume que lhe tirou da cama de manhã e a fez sacolejar em duas conduções – pega-o instintivamente, como fizera com outros dois volumes,
               duas prateleiras acima,
               dois minutos atrás.
                                          
Dessa forma, o Acaso coloca em suas mãos o livro que ela havia emprestado e que tinha simplesmente desaparecido. Depois de décadas sem paradeiro conhecido, depois de décadas de ostracismo & silêncio, ele está novamente diante dos seus olhos, como um amor do passado que se revê na fila do supermercado.




A história é simples. O que nos basta aqui é perceber como a Roda do Destino[2] agiu secretamente. Como o Destino arquitetou lentamente esse reencontro, sem pressa, semelhante a um assassino aguardando a poeira abaixar para voltar à cena do crime. Pode-se resumir tudo em dois excertos, pois a trama exige pouco para ser exposta.

O livro emprestado
– com a garantia de ser devolvido em breve –
foi passado adiante.   De mãos em mãos, seguindo sem rumo, até cair nos domínios de alguém que viu uma oportunidade de ganhar uns trocados vendendo-o. Para inocentá-lo, podemos imaginar que o cidadão pretendia salvar o almoço e garantir uma ida ao cinema. Aquele livro, imaginemos, deve valer algo!




Ou podemos imaginar, já que tudo nos é permitido, que ele misturou aquela obra a outras obras que achava ser de sua posse. 

O divórcio
           – ou viagem inesperada para assumir um cargo – obrigou-o a se desfazer de diversos pertences. Aquele livro foi só mais um, entre tantas coisas que foram deixadas para trás.

Por que não inocentá-lo? Reencontrar essa obra, tanto tempo depois, não é melhor do que tê-la em casa? Reencontrá-lo, não é a maior garantia de que ela deverá relê-lo?

O pior dos esquecimentos é deixar um livro fechado, não lê-lo. O livro fica lá, alimentando as traças[3].




Podemos imaginá-lo (o livro perdido!) em uma caixa com outras dezenas de obras, seguindo por caminhos tortuosos, no porta-malas de um fusca;

depois, imaginá-lo por dias em um depósito escuro aguardando triagem;

imaginá-lo deixado em uma pilha de obras variadas, sendo manipulado por dezenas de curiosos, anos a fio.

Assim, vencida as etapas de seu calvário, acabaria entre os itens promocionais, onde seria finalmente resgatado.

O livro de volta às suas origens, como que cumprindo um ritual. Como que fechando um ciclo.[4]

{...}




ps
Trecho do livro Achados & Perdidos
Rafael Nolli
ps 2
Ano que vem o livro deve ser publicado: 
ps3
No original, a diagramação, não é exatamente essa.




[1]desfilam ante meus olhos títulos maravilhosos moribundos de tanto estar nas prateleiras”. Angélica Freitas, Rilke Shake. Nota da revisora.
[2] Sobre o Destino aqui mencionado, um adendo: As moiras (em grego: Μοῖραι), na mitologia helênica eram as três irmãs que determinavam o destino, tanto dos deuses, quanto dos seres humanos. Eram três mulheres lúgubres, responsáveis por fabricar, tecer e cortar aquilo que seria o fio da vida de todos os indivíduos. Nota do Autor (descaradamente um Ctrl C, Ctrl V no Wikipedia).
[3] Lepisma saccharina, o terror dos sebos e dos bibliófilos. Nota do editor, de novo.
[4] O Eterno Retorno, Friedrich Nietzsche: "Esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes: e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indivisivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar”. Nota do Autor.