{...}
E as
artimanhas do Destino ficam explícitas ao se analisar o contexto.
Funciona
assim: um dia, uma mulher caminha pelas fileiras de um sebo. Os livros estão
lá, esquecidos, surrados pelo tempo, cobertos de pó de diversas eras[1].
Há quem os compare com vinhos envelhecendo, maturando o sabor & a cor –
outros, com a cachaça calibrando a embriaguês.
No meio
de milhares de obras, a mulher puxa um exemplar aleatoriamente. Aquele não é o
título que ela estava procurando – pega-o por impulso. Aquele não era o volume
que lhe tirou da cama de manhã e a fez sacolejar em duas conduções – pega-o
instintivamente, como fizera com outros dois volumes,
duas prateleiras acima,
dois minutos atrás.
Dessa
forma, o Acaso coloca em suas mãos o livro que ela havia emprestado e que tinha
simplesmente desaparecido. Depois de décadas sem paradeiro conhecido, depois de
décadas de ostracismo & silêncio, ele está novamente diante dos seus olhos,
como um amor do passado que se revê na fila do supermercado.
A
história é simples. O que nos basta aqui é perceber como a Roda do Destino[2]
agiu secretamente. Como o Destino arquitetou lentamente esse reencontro, sem
pressa, semelhante a um assassino aguardando a poeira abaixar para voltar à
cena do crime. Pode-se resumir tudo em dois excertos, pois a trama exige pouco
para ser exposta.
O livro
emprestado
– com a
garantia de ser devolvido em breve –
foi
passado adiante. De mãos em mãos, seguindo
sem rumo, até cair nos domínios de alguém que viu uma oportunidade de ganhar
uns trocados vendendo-o. Para inocentá-lo, podemos imaginar que o cidadão
pretendia salvar o almoço e garantir uma ida ao cinema. Aquele livro,
imaginemos, deve valer algo!
Ou
podemos imaginar, já que tudo nos é permitido, que ele misturou aquela obra a
outras obras que achava ser de sua posse.
O
divórcio
– ou viagem inesperada para assumir
um cargo – obrigou-o a se desfazer de diversos pertences. Aquele livro foi só
mais um, entre tantas coisas que foram deixadas para trás.
Por que
não inocentá-lo? Reencontrar essa obra, tanto tempo depois, não é melhor do que
tê-la em casa? Reencontrá-lo, não é a maior garantia de que ela deverá relê-lo?
O pior
dos esquecimentos é deixar um livro fechado, não lê-lo. O livro fica lá,
alimentando as traças[3].
Podemos imaginá-lo
(o livro perdido!) em uma caixa com outras dezenas de obras, seguindo por
caminhos tortuosos, no porta-malas de um fusca;
depois,
imaginá-lo por dias em um depósito escuro aguardando triagem;
imaginá-lo
deixado em uma pilha de obras variadas, sendo manipulado por dezenas de
curiosos, anos a fio.
Assim,
vencida as etapas de seu calvário, acabaria entre os itens promocionais, onde
seria finalmente resgatado.
O livro
de volta às suas origens, como que cumprindo um ritual. Como que fechando um ciclo.[4]
{...}
ps
Trecho do livro Achados & Perdidos
Rafael Nolli
Trecho do livro Achados & Perdidos
Rafael Nolli
ps 2
Ano que vem o livro deve ser publicado:
Ano que vem o livro deve ser publicado:

ps3
No original, a diagramação, não é exatamente essa.
No original, a diagramação, não é exatamente essa.
[1] “desfilam ante meus olhos títulos maravilhosos moribundos de
tanto estar nas prateleiras”. Angélica Freitas, Rilke Shake. Nota da revisora.
[2] Sobre o Destino aqui mencionado, um adendo: As moiras (em grego: Μοῖραι),
na mitologia helênica eram as três irmãs que determinavam o destino, tanto dos
deuses, quanto dos seres humanos. Eram três mulheres lúgubres, responsáveis por
fabricar, tecer e cortar aquilo que seria o fio da vida de todos os
indivíduos. Nota do Autor
(descaradamente um Ctrl C, Ctrl V no Wikipedia).
[3] Lepisma
saccharina, o terror dos sebos e dos bibliófilos. Nota do editor, de novo.
[4] O Eterno Retorno, Friedrich Nietzsche: "Esta vida,
assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e
ainda inúmeras vezes: e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e
cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indivisivelmente pequeno e de
grande em tua vida há de te retornar”. Nota
do Autor.
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