sábado, 26 de janeiro de 2019

Mariana, Brumadinho

1
nada subjuga a montanha de ferro
diluída em bilhões de litros d’água

intransigente
a lama busca se reconstruir
escapando pelas bordas da barragem

o espetáculo é de terror
criando uma outra coisa que não é rio
não é montanha, não é paisagem


2
a vale move as montanhas
para cima dos homens
dos seus corpos
de suas terras, de suas casas



em seu rastro, um rio de lágrimas


quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

Processos Mnemônicos


Para não esquecer:
é um poema
não como um poema de Shakespeare
algo menos formal, mais raso
tampouco inferior em ferir o tato
incomodar, mover, tirar do lugar
– às vezes um passo basta

Para não esquecer:
é um poema sobre um homem
não o canalha da capa do caderno
boçal, babando sobre a bandeira
Por certo, trata de um homem que não existe
se existe, existe somente nesse poema
– e existir no poema basta

Para não esquecer:
todas as estrofes abrem com a mesma sentença
(como em um poema de Lorca)
e uma palavra, uma palavra, uma palavra
as encerra, sem ponto final:
serão mesmo a mesma palavra
ou apenas fingem que são?

– para não esquecer, isso basta



segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

Saudade, a palavra



1
Saudade não se traduz
Ninguém a sentia
senão os portugueses
que a espalharam:
pastores, poetas, pulhas

(como a gripe, a varíola,
& a sífilis)

até o mundo todo
ficar contaminado

2
porém
ninguém sentia saudade em russo?
O que corre nas cartas de Maiakovisk?
O que sentiu Gagarin ao ganhar o céu?
Qual era a cor dos olhos de Lênin no exílio?

Uma palavra inaugura tudo?
Inventá-la, ou traduzi-la
basta para (a palavra) nos colonizar?

3
Tudo, dizem os filólogos
pelo fato de os portugueses
errarem pelos mares
(nunca dantes)
deixando para trás as amadas
os filhos, o cachorro, o gato
– aliás, saudade é para quem fica

4
Mas e os outros povos, não erraram?
Gregos e Persas pelo Egeu
Fenícios nas praias da China
Vikings cozinhando no Equador
A Invencível Armada posta a pique
encharcando de sangue o Pacífico

Se não eram saudades o que deixavam
– no coração de suas amadas –
 o que seria então?

5
Quanto desse sal?



O elefante


o tratador com a cabeça
a b e r t a
não pode explicar
a possível dinâmica da FUGA

nada sai de sua boca
senão                                                                 /m i a s m   a/
moscas & frag
men
tos
dos dentes                   /marfimanchados/

(sangue sobre o chão pisoteado
[a arena no triunfo do touro
  ou do toureiro])

o tratador, triturado pelo paquiderme
não pode ver quando
assustado
um milico emerge na cena
pequeno & inútil
o .38 na mão:

o primeiro disparo
põe fim a ladainha dos cães
e ascende das crianças o berreiro






Ars poetica


Não tenho voz de queixa pessoal, não sou
um homem destroçado vagueando na praia.
                                Drummond

por certo não sou digno da poesia
é o que se comenta
nos pequenos círculos

não comi a flor de lótus
tampouco sai às ruas chapado de rivotril

também disso estou certo
– eles o dizem, por que duvidar –
não evitei o amor
 essa grande balela

sequer morri de tuberculose
(nos corredores de uma biblioteca)

é o que se comenta
quem sou eu para duvidar

não me matei (ou matei alguém)
pelas palavras – ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência a vossa, etc & tal –
muito menos tive a Grande Visão

não vendi armas ao rei da Abissínia
ou cruzei o país
– vagabundo em um vagão –
no encalço do Sublime[1]




[1] Nota de rodapé para Ars Poetica

não fui à floresta / comer o verme na carcaça dos pássaros / não sei o gosto da solidão / bebida entre as montanhas / o sabor da solidão às margens de um lago não catalogado / No encalço do sublime, eles diziam // para se escrever poesia / você deve ir ao encalço do sublime // Não fui