segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Iminente

“Quando a vista ficar confundida, e a lua se eclipsar,
e o sol e a lua se unirem, nesse dia o homem gritará:
para onde é que se pode fugir? Oh, não haverá refúgio!”
Surata 75
         Nos tempos antigos de minha infância alimentava, à noite, uma náusea sem nome. Achava em silêncio – não havia palavras suficientes guardadas em mim para desfraldar esse sentimento – que algo de inevitável estava próximo de se consolidar. Algo ruim.
Não sabia dizer se o escuro do quarto iria se espalhar sobre o mundo e derramar seu pavor rastejante sobre as coisas coloridas da vida.
Nem se seria escuro esse caos.
Não sabia dizer se esse fim estava sendo urgido numa sala celeste, onde os deuses discutiam com seus investidores um modo viável de esvaziar o conteúdo do cálice e por fim à criação. Tampouco sabia se os deuses teriam algo a ver com isso.
Não sabia dizer se esse desconforto – que me parecia em avançado estágio de consolidação – viajava sentado na cauda de algum meteoro lançado a milhões de anos,
impelido a cruzar o universo para nos abalroar como se fôssemos um navio de H. Mellvile.
Não sabia, sentado em meu medo infantil, o que seria essa certeza perversa, tão nítida no apelo das árvores.
O que seria esse conhecimento explícito em mim como um amor inflamado? O que seria essa dor que vinha escondido no prato de comida e tirava o apetite? Que vinha entrelaçado na fala dos desenhos animados e enfartava o riso? Onde brotava, num peito pequeno de menino, uma água tão escura? Quando ela rompera o tecido e começara a escorrer pelo corpo

Fôra antes de me ver refletido mais vezes
em fundos de privadas do que em espelhos?
 
Antes de Rimbaud me seduzir para a venda
como escravo sexual aos asseclas do rei de Choa?
 
Fôra antes de cantar a Internacional, as quartas,
ao lado de pederastas, alcoólatras, poetas e                                                                                    açougueiros
 
que ainda acreditavam em Deus aos domingos?
 
Quando compreendi que não era o que se escondia no guarda-roupa que me causava aquele mal, mas a certeza de que o mundo – não apenas eu e as minhas fraquezas – acabaria? 
Então aguardei a sua consolidação em noites de trovões, em dias de discussão adulta – que traçavam o rumo de suas vidas conjugais
e a permanência do eu no limiar das coisas alegres
Então o aguardei impregnando-o de imagens retiradas dos livros de gravuras. Na fala da gente humilde, sempre a rever na cozinha seus temores e suas certezas catastróficas, complementei minha visão tingindo-a de sangue humano – substituindo árvores tombadas
        por homens tombados.
 
Não via no rosto das pessoas esse medo que me tirava o sono. Não via em seus gestos de prazer uma tentativa reconfortante de aproveitamento imediato – o fim estava próximo, algo me dizia em forma de pânico pediátrico
 
– e haveria mortes,
talvez fogo nas ruas e no cabelo das mulheres
 
– e haveria dor no coração
e nos braços ensangüentados das enfermeiras.
 
Não via em seus gestos de ódio uma revolta conscienteum ato de reprovação:
 
o fim do mundo talvez caminhasse nas ruas
escolhendo a dedo uma forma de melhor efetuar a
sua desgraça
 
– e haveria confusão:
talvez mães chorando crianças despedaçadas,
e haveria desespero nos olhos do menino sem mãe para      consolá-lo.
Não via no choro das mulheres – tão evidentes – nem na lágrima seca que rolava quando as crianças não estavam um choro ou uma lágrima a respeito da verdade que a todo instante me redimia a um único pensamento.
Talvez o fim já houvesse sido deflagrado: lento e preciso, se espalhando pelo ar, como a sombra de uma nuvem envenenada, apodrecendo sobre as cidades.
Nada se avistava no tempo, ou nas ruas. Aguardar, essa era a palavra de ordem.
  

“E para cada dia bastará apenas o seu mal”
Mateus 6:25-34

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