Iminente
“Quando a vista ficar confundida, e a lua se eclipsar, e o sol e a lua se unirem, nesse dia o homem gritará: para onde é que se pode fugir? Oh, não haverá refúgio!”
Surata
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1
Nos tempos de minha
infância alimentava, à noite , uma náusea
sem nome .
Achava em silêncio – não havia palavra suficiente guardada em mim para desfraldar esse sentimento
– que algo de inevitável
estava próximo de se consolidar .
Algo
ruim .
Não
sabia dizer o que iria ocorrer. Às vezes, achava que o escuro do
quarto iria espalhar-se sobre o mundo e derramar seu pavor rastejante sobre as coisas
coloridas da vida .
Mas sequer certeza havia se seria escuro esse caos .
Não
sabia dizer se esse
fim estava sendo urgido numa sala celeste , onde os deuses discutiam com
seus investidores um modo viável de esvaziar o
conteúdo do cálice
e por fim
à criação .
Tampouco
sabia se os deuses teriam algo a ver com isso .
Não
sabia dizer se esse
desconforto – que me
parecia em avançado
estágio de consolidação
– viajava sentado na cauda de algum
meteoro lançado a milhões de anos ,
impelido a cruzar o universo para nos abalroar como
se fôssemos um navio
de H. Mellvile.
Não
sabia, sentado em meu
medo infantil , o que seria essa certeza
perversa , tão
nítida no apelo das árvores .
O que seria esse
conhecimento explícito em mim como um amor
inflamado? O que seria essa dor que vinha
escondido no prato de comida e tirava o apetite ?
Que vinha entrelaçado
na fala dos desenhos
animados e enfartava o riso? Onde brotava, num peito
pequeno de menino ,
uma água tão
escura ? Quando
ela rompera o tecido e começara a escorrer pelo corpo ?
Fôra antes de me ver refletido mais vezes
em fundos de privadas
do que em
espelhos ?
Antes de Rimbaud
me seduzir para a venda
como escravo sexual
aos asseclas do rei
de Choa?
Fôra antes de cantar a Internacional , as quartas ,
ao lado de pederastas ,
alcoólatras , poetas
e açougueiros
que ainda acreditavam em
Deus aos domingos ?
Quando compreenderia
que não
era o que
se escondia no guarda-roupa que me causava aquele mal , mas
a certeza de que
o mundo – não apenas
eu e as minhas
fraquezas – acabaria?
Então
aguardei a sua consolidação
em noites
de trovões , em dias
de discussão adulta – que
traçavam o rumo de suas
vidas conjugais e a permanência
do eu no limiar
das coisas alegres .
Então
aguardei sua consolidação impregnando-a de imagens retiradas dos livros de gravuras .
Na fala da gente
humilde , sempre a rever
na cozinha seus
temores e suas certezas
catastróficas, complementei minha visão
tingindo-a de sangue humano – substituindo árvores
tombadas por homens tombados.
2
Não via no rosto das
pessoas esse medo
que me
tirava o sono . Não via
em seus
gestos de prazer uma tentativa
reconfortante de aproveitamento
imediato – o fim
estava próximo , algo me
dizia em forma
de pânico pediátrico
– e haveria mortes ,
talvez fogo nas ruas e
no cabelo das mulheres
– e haveria dor no coração
e nos braços
ensangüentados das enfermeiras.
Não via em seus gestos de ódio uma revolta
consciente ,
um ato de reprovação:
o fim do mundo talvez já
caminhasse nas ruas
escolhendo a dedo uma forma de melhor efetuar a
sua desgraça
– e haveria confusão :
talvez mães chorando crianças
despedaçadas,
e haveria desespero nos olhos do menino
sem mãe
para
consolá-lo.
Não via no choro das
mulheres – tão evidentes
– nem na lágrima que rolava quando as crianças
não estavam, um choro
ou uma lágrima
a respeito da verdade que a todo instante me redimia a um
único pensamento .
Talvez o fim já
houvesse sido deflagrado: lento e preciso, se espalhando pelo ar, como a sombra
de uma nuvem envenenada, apodrecendo sobre as cidades.
Nada se avistava
no tempo, ou nas ruas.
Aguardar, essa
era a palavra de ordem.
Eu aguardava.
*
“E para cada dia bastará apenas o
seu mal”
Mateus 6:25-34
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