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Cenas do templo de Ninhursag - arte sumeriana |
O anúncio que
leio sobre você não
me diz nada
a respeito de suas
felicidades domésticas:
é pequeno aviso para quem se habilite a chorá-la
até que as lágrimas
salguem o café
ou que suspiros mais pesados
– sempre uma ponderação
sobre a
nossa própria
morte –
apague
todas as velas
e não reste nada
a fazer além
de sepultá-la.
É sucinto esse papel – que amanhã
irá embrulhar pernil e asa de frango –
ao convocar todos para o seu enterro:
sua mais importante
data, a única
que mereceu
ser impressa e divulgada (provêm disso
o batom nos lábios para receber
as visitas
e o sapato novo,
agora incapaz de incomodar seus calos
e joanetes).
Nada fala ele sobre as suas vitórias cotidianas –
a força com que suportou as surras
do marido,
que vinha a cada dia com a mão mais dura e calosa:
os beijos alcoólicos
que
nunca lhe
deram um orgasmo.
Nada fala sobre sua heróica forma de agüentar
a fome de seus filhos, comendo a terra da parede –
os vermes e as lombrigas
exaltadas
diante das propagandas da Coca-Cola
& do Mac’lanche
Feliz:
a lágrima nos olhos
contrastando com
a sede das bocas.
Talvez,
em outra
época,
no colo do socialismo,
seria
uma estátua sua
que ergueriam hoje
na rua.
Essa mesma rua que tem o nome
de alguém que não lhe diz
respeito
que lhe rouba um pouco por dia
nos impostos,
nas contas de luz
e de água.
Uma estátua seria o seu
destino
por arrastar cinco filhos
que
nasceram um nas costas
dos outros:
– e lhe
arrancaram com os dentes
o bico dos seios;
– e lhe desgraçaram o ventre
e as costas
como
a um campo
cansado de produzir;
– e lhe tornaram velha
antes do tempo
com
saídas noturnas, brigas
de canivete
notas
vermelhas no boletim;
– e lhe adoeceram em
doses homeopáticas
ao se tornarem, a cada queda
o pai
que tinham, propenso
a discórdia
e ao grito
incivilizado.
Nada me diz sobre a sua luta habitual
essa miserável advertência que me chega às mãos
que leio antes de correr os olhos
pelas notícias
do futebol
e a seção
de quadrinhos.
Nada sei sobre o modo que lidou
com os amores de seu marido:
as damas do baralho
e as senhoras
dos prostíbulos
que
comiam o pão de seus
filhos
ou
trocavam o leite extraviado
por
uma dose de Dry Martini.
Assim como nada sei sobre a sua
resignação
ao lidar com seus próprios amores: a rádio
AM,
de onde sabia dos que
estavam amanhecendo presos
ou
degolados e as conversas de feira
a propósito do podre na
carne dos tomates
e os mandruvás insurgentes
na alface.
Se você havia depositado suas
fichas no futuro
esperando
uma mudança, eu
pouco sabia; mal
consigo imaginá-la
sonhando com algo
de brusco
que finalmente inaugure
o reino
dos homens sobre
a terra
(se sua aposta
havia sido lançada
na faca cega da cozinha, na ingestão do mata-piolho
no salto pela janela, tampouco
consigo saber).
Quase sinto
o mundo
esse mundo em que vivemos
repelir você, varrendo para debaixo do tapete
sua vida feita de derrotas sucessivas –
para que na vitrine
fiquem apenas
aqueles que entraram no ringue
armados
donos de roteiros escritos
a sangue
lhes
garantindo um futuro
glorioso.
Esse papel que leio não passa de um monte
de palavras agrupadas em
torno do objetivo
de
esquecê-la de uma vez por todas.
Fecho o jornal e morro contigo.
* do livro comerciais de metralhadora