(poema sobre uma notícia real)
1
Quando
arrombaram a porta – com um solavanco e um pé de cabra – os enlatados já
estavam com a data de validade vencida em dez anos, pelo menos.
Alguns
objetos da cena – tv de tubo, telefone fixo, vitrola, vídeocassete – já não se
fabricavam mais: foram eliminados ou sofreram saltos evolutivos: pouco lembravam
aqueles sáurios.
Quando
entraram na sala, um presente de Natal – de dez anos atrás! – aguardava para
ser aberto (ou enviado) e não seria jamais: tudo fora adiado para sempre
naquela casa.
2
O
corpo da mulher estava lá
quando
arrombaram a porta:
em
meio à mobília
diante
da tv desligada
a
dez anos, pelo menos:
nenhum
telefonema
nem
uma única visita
O
corpo em meio à mobília
esquecida
por uma década:
dezenas
de aniversários
ceias
bodas
reuniões
do condomínio (centenas delas!)
bailes
do Clube dos Aposentados
todos
passaram em branco
Ninguém
para reclamá-la
nenhum
vizinho ou amante
que
tenha dado por sua falta
Sobre
a cômoda, coberta de pó
a
caderneta de endereços
abarrotada
de nomes
3
Nenhum
inimigo fiel & impiedoso para cobrar uma dívida, para esclarecer velha rixa
– para perdoar uma rusga do passado,
ou
um passante, incomodado com o mal cheiro, ou um voyeur acampado no edifício em
frente, ou um ladrão sorrateiro. Ou um dos filhos.
Quando
arrombaram a porta e entraram na casa, viram o corpo de dez anos atrás,
esquecido como um animal no meio da mais obscura floresta, largado na mais
completa solidão
(lá
fora, a cidade fervilhante).
4
Quanto
tempo terá resistido o cão
–
desesperado & faminto –
após
a morte da dona?
2 comentários:
Tem que ter um olhar muito aguçado pra abrir o jornal, ver a notícia e enxergar o poema. Que trabalho, meu amigo! Dá a sensação de estar no quarto, observando o corpo decompor, o ar pesar e estar de mãos atadas assistindo ao tempo cumprir sua tarefa. Não sei se é isso, mas lendo teu escrito fiquei com a sensação de que somos todos aquela árvore que cai na floresta e não é ouvida por ninguém. Talvez a gente só morra quando alguém constate o óbito. Até lá, morrer é o que você capturou: a mobília, as dívidas que ninguém reclama, o cachorro que a gente não sabe se sobrevive. Você é um ótimo contador de histórias.
Thales, muito obrigado pela visita e pela leitura! Gostei muito da sua observação! É exatamente isso! Volte sempre!
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