sexta-feira, 22 de maio de 2020

Não me convidem para um sarau de poemas


Não me convidem para um sarau de poemas
tampouco se camuflam o evento com outros nomes:
récita, para ficar mais chique;
serão, para dar uma ideia de povo;
tertúlia, para ficar meio gourmet;
festa, para fingir uma alegria que não haverá;
apresentação, para mentir uma importância que não temos

De qualquer forma – ou em qualquer lugar –
(uma mesa de bar, uma praça, um palanque)
terminamos – pobre de nós! –
diante de um poeta com um livro aberto nas mãos
dizendo um monte de asneiras sobre si mesmo
(deslumbrando com sua genialidade)
(abismado com a profundidade de seu umbigo)

Na maioria dos casos – sem que possamos reclamar –
terminamos diante de um poeta empunhando o celular
pesquisando no google seu último verso
postado em um blog
– Em breve meu livro sairá!  

Ou terminamos – sem que possamos protestar –
diante de um poeta armado com uma folha chamex:
trêmulo, pobre coitado, crendo que será alçado ao estrelato:
a poesia é um céu de poucas estrelas, ele ainda não sabe
(a poesia é um céu de poucas estrelas
em um espaço onde orbitam satélites em sucata)

ele ainda não sabe, não leu Jean Cocteau:
“a poesia é uma religião sem esperança”

Não me convidem para um sarau de poemas
sobretudo se no cartaz confundem poema com poesia;
sobretudo – e acima de tudo! –
se se abrem os microfones para qualquer aventureiro declamar:
na maioria dos casos – sem que possamos questionar –
terminamos diante de um poeta
– que título de nobreza! –
que irá tentar lembrar de cor um verso de Alberto Caeiro
ou recitará com sofreguidão
– Perdoem a minha memória
sua última aventura pelas sendas da criação

Não me convidem para um sarau de poemas
pois há o risco imediato de terminarmos vitimados
– quantas dores seriam evitadas
se não saíssemos de casa! –
por um monte de rimas que não se aproximam
senão pelo som vago de uma pobre melodia

Não me convidem para um sarau de poemas
pois há ainda, quase sempre & irremediavelmente
a possibilidade de terminarmos – sem que pos
samos nos rebelar –
“ouvindo” um verso de Baudelaire
surrupiado, sem dó nem piedade
por um poeta que não contará com nossas leituras
& nossas noites em claro, visitando as traças
(Baudelaire se revirando em seu túmulo no Montparnasse)

Não me convidem para um sarau de poemas
pois a namorada, que é arrasta para essa barbárie
suspirará entre os versos – de tédio ou de pavor
que fique claro –
e o amor não pode se desgastar por essas bobagens
(e o amor não dever ser colocado à prova
de forma tão irresponsável)

Não me convidem para um sarau de poemas
pois há o risco imediato – & fatal
– um temor sublime – de acabarmos sendo filmados
(em nosso pior ângulo) em meio a essa selvageria
e terminamos expostos nas redes sociais
– como carne no mercado –
mendigando meia dúzia de likes

E o pior dos pesadelos
(por isso não me convidem para um sarau de poemas):
a possibilidade de terminarmos
– sem que possamos nos subelevar –
diante de um poeta com um guardanapo na mão
de onde escorre a tinta de um poema parido ali mesmo
– Escrito na inspiração do momento!

(e segue nessa inspiração – na palavra! –
um belo par de aspas)

Ainda que amemos o poema
(essa religião sem esperança)
e dediquemos nossos melhores anos à busca da poesia

não me convidem para um sarau de poemas!


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