quarta-feira, 21 de abril de 2021

FOR SALE

 

Para o ministro Ricardo Salles

1

está à venda a floresta

ou o que dela ainda resta:

 

é tanto verde, que enoja:

melhor a monocultura da soja

 

onde há uma tribo indígena

a pecuária extensiva

 

bichos, rios, biodiversidade

troca-se por pasto, garimpo, cidade

 

para isso não falta partidário

lugar de índio é na foto do calendário

 

2

posseiro, grileiro, garimpeiro

não convém mexer nesse vespeiro

 

o agro é pop, o agro é tudo

o agro transforma a mata em latifúndio

 

agente laranja, glifosfato, mercúrio

tornar legal o que é espúrio

 

caatinga, amazônia, cerrado, pantanal

melhor um pasto ou um canavial

 

3

mesmo o que era protegido

– por lei, por decreto – está ameaçado

 

mesmo o que havia de mais raro

– culturas, plantas, povos – virou um alvo

 

mesmo o que tínhamos de mais caro

– água, biodiversidade – é desprezado

 

mesmo o que tínhamos de mais farto

– e o farto não nos faltava – se torna escasso

 

 

4

mais poderosa que a motosserra

a floresta se derruba em uma canetada

 

mais poderosa que os tratores

a floresta se mata em uma canetada

 

mais poderosa que as dragas

a floresta se esvai em uma canetada

 

mais poderosa que as correntes de arrastão

a floresta se extingue em uma canetada

 

enquanto isso, diante de nossos olhos

segue passando a boiada

 

 

5

Da floresta é importante dizer a verdade:

Mais da metade, já virou saudade

 

Da floresta é importante dizer a verdade

Mais da metade já virou lembrança

 

Da floresta é importante dizer a verdade

Da metade extinta, brotará a outra metade

 

 

sexta-feira, 29 de maio de 2020

FOR SALE


1
Está à venda a floresta
ou o que dela ainda resta:

é tanto verde, que enoja:
melhor a monocultura da soja

onde há uma tribo indígena
a pecuária extensiva

bichos, rios, biodiversidade
troca-se por pasto, garimpo, cidade

para isso não falta partidário
lugar de índio é na foto do calendário



2
posseiro, grileiro, garimpeiro
não convém mexer nesse vespeiro

o agro é pop, o agro é tudo
o agro transforma a mata em latifúndio

agente laranja, glifosfato, mercúrio
tornar legal o que é espúrio

caatinga, amazônia,cerrado, pantanal
melhor um pasto ou um canavial



sexta-feira, 22 de maio de 2020

Não me convidem para um sarau de poemas


Não me convidem para um sarau de poemas
tampouco se camuflam o evento com outros nomes:
récita, para ficar mais chique;
serão, para dar uma ideia de povo;
tertúlia, para ficar meio gourmet;
festa, para fingir uma alegria que não haverá;
apresentação, para mentir uma importância que não temos

De qualquer forma – ou em qualquer lugar –
(uma mesa de bar, uma praça, um palanque)
terminamos – pobre de nós! –
diante de um poeta com um livro aberto nas mãos
dizendo um monte de asneiras sobre si mesmo
(deslumbrando com sua genialidade)
(abismado com a profundidade de seu umbigo)

Na maioria dos casos – sem que possamos reclamar –
terminamos diante de um poeta empunhando o celular
pesquisando no google seu último verso
postado em um blog
– Em breve meu livro sairá!  

Ou terminamos – sem que possamos protestar –
diante de um poeta armado com uma folha chamex:
trêmulo, pobre coitado, crendo que será alçado ao estrelato:
a poesia é um céu de poucas estrelas, ele ainda não sabe
(a poesia é um céu de poucas estrelas
em um espaço onde orbitam satélites em sucata)

ele ainda não sabe, não leu Jean Cocteau:
“a poesia é uma religião sem esperança”

Não me convidem para um sarau de poemas
sobretudo se no cartaz confundem poema com poesia;
sobretudo – e acima de tudo! –
se se abrem os microfones para qualquer aventureiro declamar:
na maioria dos casos – sem que possamos questionar –
terminamos diante de um poeta
– que título de nobreza! –
que irá tentar lembrar de cor um verso de Alberto Caeiro
ou recitará com sofreguidão
– Perdoem a minha memória
sua última aventura pelas sendas da criação

Não me convidem para um sarau de poemas
pois há o risco imediato de terminarmos vitimados
– quantas dores seriam evitadas
se não saíssemos de casa! –
por um monte de rimas que não se aproximam
senão pelo som vago de uma pobre melodia

Não me convidem para um sarau de poemas
pois há ainda, quase sempre & irremediavelmente
a possibilidade de terminarmos – sem que pos
samos nos rebelar –
“ouvindo” um verso de Baudelaire
surrupiado, sem dó nem piedade
por um poeta que não contará com nossas leituras
& nossas noites em claro, visitando as traças
(Baudelaire se revirando em seu túmulo no Montparnasse)

Não me convidem para um sarau de poemas
pois a namorada, que é arrasta para essa barbárie
suspirará entre os versos – de tédio ou de pavor
que fique claro –
e o amor não pode se desgastar por essas bobagens
(e o amor não dever ser colocado à prova
de forma tão irresponsável)

Não me convidem para um sarau de poemas
pois há o risco imediato – & fatal
– um temor sublime – de acabarmos sendo filmados
(em nosso pior ângulo) em meio a essa selvageria
e terminamos expostos nas redes sociais
– como carne no mercado –
mendigando meia dúzia de likes

E o pior dos pesadelos
(por isso não me convidem para um sarau de poemas):
a possibilidade de terminarmos
– sem que possamos nos subelevar –
diante de um poeta com um guardanapo na mão
de onde escorre a tinta de um poema parido ali mesmo
– Escrito na inspiração do momento!

(e segue nessa inspiração – na palavra! –
um belo par de aspas)

Ainda que amemos o poema
(essa religião sem esperança)
e dediquemos nossos melhores anos à busca da poesia

não me convidem para um sarau de poemas!


Poema de Natal



1
Nós
(durante o solstício de Verão
no coração da América Latina

que sequer temos chaminés
ou pastos para as renas)

cultuamos Papai Noel:
essa invenção de uma multinacional
para vender refrigerantes

2
Em algum lugar no passado
na Pérsia, por exemplo
se comemorava em nome de Mitra
deus da luz, da guerra e da sabedoria

Em algum lugar no passado
no Egito, por exemplo
se celebrava a passagem de Osíris
(deus da vida, da morte
e de depois da morte)
para o mundo do além

Em algum lugar no passado
na Grécia e em Roma, por exemplo
se enchia a cara em nome de Dionísio
e de Baco

Em algum lugar no passado
no Brasil, por exemplo
se comemorava o nascimento de Jesus


Não Vire as Costas, Estou Falando com Você


ah, a poesia! oh, a poesia!

"que belo a cor do rouxinol
o canto da cotovia
na charneca florida
a cor do arrebol"

escreve o poeta em sua última antologia
– eu prefiro chamar de florilégio!
ele explica em uma postagem em rede social

a poesia, ah! a poesia, oh! 

“salpico nos meus versos o amor em suspiros
para sobreviver às ninharias do dia-a-dia
e tudo que é belo me arrebata o espírito”

reponde o poeta em uma entrevista em seu blog
– acesse aí o link para comprar o meu último livro!



enquanto isso, o sangue corre debaixo das pontes


terça-feira, 19 de maio de 2020

Livro Isca: baixar

Para fazer download o livro Isca, basta acessar o link abaixo!




https://drive.google.com/open?id=1HTUorhlWmkyv09Ixx3dDt2iRl2T-mE0V

sábado, 4 de abril de 2020

Isca

Amigos, publiquei um e-book! A obra se chama Isca. Seguindo o espírito da quarentena, toda a obra foi feita em casa, inclusive o lançamento: uma live no Instagram.

Case queiram ler a obra, é só solicitar que envio! Será um prazer!






terça-feira, 24 de dezembro de 2019

Explicação



cada casa é uma trincheira
que se defende de um inimigo invisível

(talvez seja o vizinho
ou um dos nossos – algo nos diz)


e rua a rua a guerra é perdida
pelo avanço de exército nenhum




domingo, 1 de dezembro de 2019

Uma árvore chamada Brasil



1
um ser humano
– bem alimentado
dotado de apetrechos variados (re-
médios, médicos, TV, internet, forno
micro-ondas, celular) –
vive, em média, 79 anos

caso tenha sorte
– ou o nome que se queira dar (e
não seja atropelado, baleado
caia no poço do elevador ou
escorregue no banheiro) –
um ser humano
– bem alimentado –
vive, em média, 79 anos

2
há no mundo uma ordem de insetos
– denominados ephemeroptera (ainda
que pouco importe o seu nome
/ por mais poético que ele seja /) –
que vive, em média, 24 horas

um dia na vida de um homem
– que em média não comemora
(que forma estranha de dizer isso!)
o octogésimo aniversário –
é toda a vida de um desses insetos

isso caso eles sejam bem alimenta-
dos (e não acabem debaixo de um chi-
nelo, envenenados por defensivos agrícolas
fritados no mata-mosquito
/ dependurado no teto de um boteco /
terminem no bico de uma ave
ou encontrem a indesejável das gentes
no papo de um sapo)

3
em Santa Catarina
– estado da região sul (que tem o no-
me em homenagem a uma mártir
que apareceria
/ anos mais tarde /
nos sonhos de Joana d’Arc) –
havia uma árvore de 535 anos
(quinhentos e trinta e cinco anos)
diante desse colosso – de mais de 30 me-
tros de altura
(o mesmo que um pré-
dio de 10 andares) –
um homem
com seus míseros 79 anos de vida
– em média –
não é grande coisa;

o tempo que é ofertado ao homem
(ao mais longevo deles)
não é nada perante ao tempo
– tempo tempo tempo –
vivido por uma dessas árvores

diante desse colosso –
de mais de 30 metros de altura
(o mesmo que um prédio de 10 andares) –
um homem, com seus míseros 79 anos
de vida – em média – é (ou deve-
ria ser), no mínimo, um súdito

diante desse colosso – de mais de 30 me-
tros de altura (o mesmo que um pré-
dio de 10 andares) –
um desses insetos (efêmeros, viven-
do menos que um dia, em média)
não é mais do que nada:
um estralar de dedos
um piscar de olhos
um risco n’água

a árvore não pode ser compreendida por eles –
se tivessem a capacidade de dimensionar
analisar, compreender –
senão como um ser eterno
(incriado, imortal):
uma divindade

4
quando o primeiro português aportou no es-
tado (possivelmente gripado, arma-
do com uma Bíblia e um mosquete)
essa árvore – uma imbuia de 535 anos –
já era grande e frondosa

o Brasil tinha acabado de ser batizado (com
o nome de uma árvore) e a árvore
– uma imbuia –
já existia há quase 30 anos
(aproximadamente a metade
do tempo de vida útil de um homem)

essa árvore já existia – há décadas (se
nos guiarmos pe-
la historiografia oficial) –
quando as capitanias hereditárias fo-
ram criadas; ela viu o Governo Geral
tal como as primeiras vilas e posterior-
mente as primeiras cidades;
o ciclo do ouro, da borracha, do café
passou diante dos seus olhos;

com seus 535 anos
foi testemunha viva de uma série de eventos
(muitos deles catastróficos):
índios sendo mortos em suas sombras
jesuítas, bandeirantes, tropeiros, etc
descansando em suas volta
(uma pausa para fazerem o que bem sabemos
que eles faziam)

ela sobreviveu – por 535 anos –
e pôde contemplar
– do alto de seus 30 me-
tros de altura (o mesmo que um prédio de 10 an-
dares) a ascensão e a queda do império;
o surgimento da república (com to-
dos os seus percalços: um golpe de estado, já de ca-
ra; uma ditadura nos anos 30;
outra na década de 60, etc...)

ela sobreviveu – por 535 anos –
e foi testemunha de tanta coisa grandiosa
e de tantas miudezas
(que a história sequer registrou!)
que é impossível dimensionar
a sua magnitude

5
ela sobreviveu – por 535 anos –
e, em fim, encontrou com o seu destino (nos den-
tes de ferro de uma motosserra):

o estrondo ao cair
(imaginem o tamanho do barulho!)
como se despencasse um gigante
– esses gigantes dos contos de fadas –
do alto de seu castelo nas nuvens

o estrondo
(imaginem o tamanho do barulho!)
como se um deus (por
que não?) despencasse do alto dos céus




30/11/19

sexta-feira, 15 de novembro de 2019

Naufrágio


Em 1988, eu tinha oito anos. Lembro como se fosse hoje de acompanhar pela tevê o naufrágio do Bateau Mouche.
É uma recordação que nunca me abandonou.

Depois, o caso do menino sírio, encontrado morto em uma praia da Turquia - outra recordação difícil de apagar da memória.


Esse poema é sobre os dois casos.


Naufrágio


É novo, ou de pouco uso
o chinelo que a maré trouxe de volta
como atesta as suas cores intactas

O brilho da borracha reforça a teoria
O sal pouco fez contra a sua estrutura
O sol, tampouco
O azul do céu
ainda lhe parece um irmão caçula

Talvez o canal o tenha trazido
boiando em meio a toda sujeira
ou a chuva da madrugada

Chacoalhando na espuma
– a noite toda –
para ser devolvido às areias da praia
sem memória
misturado aos restos dos corais

Amanhã o outro pé, novinho
Depois o corpo do menino






l. rafael nolli

sábado, 19 de outubro de 2019

Dois poemas sobre o rio



Inventário de um rio # 1

Às margens desse rio asfixiado
habitado pela merda expelida das casas
e o ácido excedente das indústrias
homens pararam por um instante –
testemunharam seus reflexos no espelho;
outros
velaram toda uma noite atrás de um peixe.

Nessas águas espessas
violentadas pelo óleo das auto-estradas
oprimidas pelo caldo dos bueiros
mulheres lavaram a roupa e as mágoas;
outras
se aliaram ao corpo do rio
para ajudar as flores a resistirem ao inverno
e os tomates a se rebelarem contra a seca.

Às margens desse rio viciado
picado pela agulha dos hospitais
assaltado pela indigestão dos restaurantes
meninos caçaram animais que por ali se aventuravam,
ou simplesmente ficaram ao vento –
que não tinha o cheiro
senão do campo que percorria.



Inventário de um rio # 2

1
Aquele havia sido o meu Eufrates.
Ainda que inexpressivo
– sequer constava no mapa –
não teria havido nada sem ele

(a água era tão pouca
e de tão má qualidade
– pombos sedentos agonizavam
às suas margens –
que nada sobrevivia em seu bojo
[além de vermes aquáticos
e caramujos da esquistossomose])

Aquele havia sido o meu Aqueronte.
Quando corria –
quase sempre estava engasgado
com o cadáver de um cão –
conduzia a inframundos
sobre o domínio de Hades

(pouca era a sua água
e de tão má qualidade –
espessa como a baba de um enforcado –
que ela se mostrava incapaz de refletir o céu
[senão simulá-lo
com um azul de olho vazado])

2
Aquele que havia sido o meu rio
se arrasta por galerias de concreto
– como um fantasma do Lete –
roendo pacientemente os pilares da cidade