quinta-feira, 15 de novembro de 2007

Considerações a Respeito de um Homem Nu, em 1926


George Grosz - Os Pilares da Sociedade



Há alguns anos minha avó veio morar conosco. Costume antigo, sempre está contando algumas histórias, que traz fresca na memória. Todas repletas de matéria-prima para crônicas nostálgicas ou papos descontraídos em mesa de bar.

Vivendo em fazendas, ou em pequenas cidades do interior de Minas, fala de como sua avó fora laçada numa tribo de índios – não recorda o nome da tribo ou o estado onde ocorreu o fato; fala de como certa vez fora levada com suas irmãs para a cidade para verem o espetáculo do acender dos postes. A tecnologia, então, consistia numa lamparina movida a querosene e o protagonista da cena um homem qualquer, que vinha acendendo lâmpada por lâmpada, iluminando o caminho.


Recorrente em seus assuntos é uma porção de revoluções que ela presenciou. De repente chegavam homens, ninguém sabe de onde, nem servindo a que propósito, e levavam os jovens para lutas em outros cantos. Ela nunca mencionou se esses voltavam esfarrapados, mutilados ou se não voltavam nunca. Tampouco isso vem ao caso.


Era menina, e a década provável os anos 30/40. Penso sempre que batalhas poderiam ser essas, travadas nesses confins do mundo, onde a vida era completamente diferente da contada nos livros de história e nos almanaques de farmácia. Por aqui a bastilha ainda não havia caído, a Rússia sequer existia, e Napoleão, que tinha banhado o mundo com sangue, poderia tanto ser uma lenda mitológica como um santo católico.
Quase sempre concluo que se trate de disputa de fazendeiros – coronéis donos do mundo – lutando pela expansão de suas propriedades, ou promovendo um rotineiro massacre nos latifúndios vizinhos. Uma dessas aventuras, é certo, se trata da segunda Guerra Mundial. Essa, devidamente documentada, passou em sua Macondo recolhendo as motos e os veículos que supostamente seriam enviados para a Europa. Meu avô tivera a sua motocicleta confiscada. Se ela fora para a Europa servir de cavalo motorizado para as tropas aliadas ou se ficou nas mãos de algum burocrata, passeando nas ruas da capital, não é possível saber.


Porém, nenhuma dessas histórias me tocou mais que a saga de Mané Pelado. Num momento em que a ordem do dia consistia em buscar lenha nos campos repletos de cascavéis e cuidar das criações, alvo constante dos predadores naturais e das intempéries da natureza, a paz estabelecida era quebrada pela figura esguia, completamente nua, que ficava rodeando as casas e ao primeiro sinal se lançava às matas e sumia.

Por um descuido, pode parecer que estamos falando de uma assombração, que naquela época realmente existia aos montes. As histórias de lobisomem, de extraterrestres, são um caso a parte. Mané existia mesmo e tudo indica que era um louco, fugitivo de algum lugar, ou, em outra hipótese, um abandonado pela família que sobrevivera comendo raízes, roubando ranchos, capturando pequenos animais.

Mas quem era esse ser que costumava invadir as casas quando todos saíam para a colheita, ou à pesca, para beber o leite recém ordenhado? Quem seria esse homem que aproveitava os descuidos para invadir as residências, comer o pão, beber a pinga, tirar um cochilo em cama quente? Seria uma vítima dessas revoluções, com a sanidade ferida em combate diante da visão do holocausto? Seria um pensador, que um pouco atrasado, mas sozinho e com os recursos que possuía, percebera que a vida que se levava nas cidades era um câncer e o mundo caminhava para o abismo?


Conta a minha vó que, certa vez, sua mãe ao notá-lo se esgueirando nas imediações da casa atirara nele com a carabina. Ele saindo em fuga, para voltar no outro dia, é uma imagem que me impressiona muito.


O que foi feito dele, ninguém sabe. Por certo, onde caiu morto ficou até que a natureza encarregasse de consumi-lo. Encontrado por caçadores, talvez tenha sido enterrado na beira de algum riacho, num túmulo coberto de pedras que o musgo engoliu. Em última instância, pode-se crer que tenha recobrado a lucidez e retornado para casa, onde filhos e mulher já haviam se esquecido do luto.


No mais é isso, ficando cada um com o fim que mais lhe apetecer.





*

11 comentários:

Samantha Abreu disse...

Muito bom!
você escreve muito bem, Rafael!

Parabéns.

Beijos!

Mary disse...

É tão bom ouvirmos de nossos "antepassados" as histórias que eles viveram e ouviram de seus pais... Meus avós também possuem alguns "causos" destes que são reais, mas que a mim são mais que reais... beiram ao realismo fantástico que leio em alguns livros. E a imaginação viaja a cada vez que a história é contada ou re-contada.

Ótima reflexão, Rafael. O Mané Pelado pode ter sido uma vítima do sistema vigente sim, como tantos que hoje existem...

Bjinhos e ótimo início de semana!

=]

Mary disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anônimo disse...

Parecia que eu estava lendo Garcia Marquez, misturado com você.
Bacanérrimo.

Anônimo disse...

Velho,

Maravilha de texto. Puta texto.
Seu avô andava de moto na contra-mão, coisa de poeta. Talvez ele seja o primeiro poeta da família.
Imagens poética e bem construídas como as de sempre da tua lavra.

Abração e muita luz.

Caim disse...

Ae Nolli... muito bom o texto... sera o que aconteceu com esse Mané heim?
um ludita muito doido... hehehe...

. fina flor . disse...

o que seria de nós sem essas figuras que invadiram nossa infância, né?

na minha rua tinha o Bené, um gay que andava de tamancos, baton e brincos imensos e que corria atrás dos moleques, rs*

beijos e boa semana, querido

MM.

ps: leia O Corpo Portátil, do Fernando Fiorese, poeta mineiro que fez liiiiiiiiindas poesias sobre essas pessoas que perambulam por Minas e por seu coração :o)

anjobaldio disse...

Muito bom, cara. Abra�o.

dade amorim disse...

Essas histórias irresistíveis estão meio raras, hoje em dia, na cidade grande. Mas ainda guardamos algumas na memória de outros tempos, de gente como essa avó. E uma história assim, que fica em aberto, é sempre muito boa, Rafael.
Um biejo.

diovvani mendonça disse...

Eh, meu caro Rafael...
A versão oficial da história, é contada por aqueles que obteveram a vitória.

E que bom a gente ter pessoas como sua avó, para nos contar "estórias", que bem podem ser nossas verdadeiras histórias, né-não?

~^^ ~Abraço~^^ ~

P.E. Sim, muito bom, ver também suas pegadas pelas trilhas da LOBA. Gostei, de outras pegadas lá - inclusive, arrepiei d+ com uma poeta, aí, de sua Araxá.

_Maga disse...

Frente a esta perola que você escreveu só posso concluir que precisamos reaprender a contar histórias... e a ouvi-las também...

adorei o texto! (adoro avós...)

beijos