quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Impiedoso poema felino


pardal - foto rafael nolli

Quando os gatos se acabam debaixo da roda dos carros,
ou se matam na boca de cães domésticos
– !equilibristas insanos de muros de quintais! –
eu me nego a dormir em paz.

Não por amá-los,
pois desde sempre os odiei
com seus roucos miados boêmios:
insuportável ruído noturno perante o canto dos grilos
e dos galos,
diante do pio das corujas
e o alarme dos carros arrombados.

Não por compadecer de sua extinção.
Lamento, antes, o som de grandes vira-latas
feito saco de ossos e merda espalhados no asfalto
(quando se pode somar à suas tripas e pêlos
uma boa dose de urina ou ódio
e nada alterar em sua desgraça).

Quando os gatos aniquilam-se
em pedaços de carne envenenada,
jogadas por sobre o muro ou deixadas na sarjeta,
eu me sinto diferente de quando
as últimas aves se desfazem nos pára-brisas dos ônibus,
ou de quando o gado confinado
se esquece de sua natureza
e pensa a si mesmo como mais um dos postes da cerca.

Não por prezar-me da sina dos gatos,
pois antes de tudo amaldiçôo-os categoricamente –
esquecido do bom senso, dos modos ou da etiqueta.

Não por indignar-me de restar a eles,
e a sua classe, a corda-bamba dos muros:
por ideologia sempre acreditei ser o mundo dos homens
e de seus fantasmas,
dividido em partes iguais aos primeiros citados.

Quando os gatos são substituídos por seres genéricos,
animais exóticos ou bichinhos de pelúcia,
que não trazem mentira, asma ou alergia ao lar,
eu me nego a dormir em paz.

Não por estar a par dos últimos avanços da medicina,
das técnicas homeopáticas, dos tratamentos alternativos,
das UTIs e do xamanismo em última instância,
mas por saber o restante intratável.

Na noite em que os gatos são subjugados pelas ratazanas
e seus corpos devorados em belos ensopados,
ou servidos em noites de gala em espetinhos de bambu,
nas noites em que crianças amarram bombinhas em seus rabos,
ou os lança aos fios de alta tensão para ver os fogos,
eu me nego a dormir em paz...

Porém, eu durmo.


*