terça-feira, 20 de julho de 2010

Cidade Vazia

Para Betina Ribeiro Rodrigues da Cunha


arte: Hugo Martins

Nada se sabe sobre essa cidade vazia.
Para onde foram os seus não há pista.
Nenhum detetive seria capaz de descobrir,
nenhuma cartomante poderia ajudar.

O semáforo sorteia o verde e o apresenta,
carro algum se disponibiliza a avançar –
estúpido, só o faz mediante chicotadas.
O letreiro luminoso oferece sanduíche,

ninguém para matar a fome ou a sede –
que seja através do saque, às claras:
as portas abertas convidam ao crime,
o cofre bojudo dorme um sono pesado.

Seria um flautista arrebanhando gente,
ou uma promessa de vida melhor adiante?
Pista alguma se encontra que as comprove.
A cidade é a mesma de ontem. E não o é.

O Silêncio que nunca andou por essas ruas,
a Paz que ainda não havia se mostrado,
a Tranqüilidade definitivamente alforriada
são os únicos que por aqui restaram.

Um gás letal terá pegado todos de surpresa
enquanto dormiam ou escovavam os dentes?
Um deus vingativo terá vindo puni-los
pelos séculos de luxúria e lassidão?

Sol e chuva por fim vencerão a luta, come-
rão a parede das casas e a pele do asfalto...
A barragem saciada se romperá
afogando os prédios, soterrando os bairros...

São conjecturas apenas.
Nada se sabe sobre essa cidade vazia.

arte: Hugo Martins
*

sábado, 3 de julho de 2010

Jesus


foto: O Caracol - Rafael Nolli

Senhor, o poema exige prudência.
Prudência. Prudência. Prudência.

Mulheres tremem ao imaginá-lo
& homens se contorcem de medo.

Se enfurecem por você. Por você são
capazes de tudo, com fúria, com ira.

Não os quero diante de minha casa
ou sobre mim, com suas tochas.

Prudência para não despertá-los
ajoelhados na primeira fila –

bebendo a palavra mastigada, encharcada,
espessa como a baba de um condenado.

2
A palavra em si trás o equívoco.
A tradução: uma sucessão de equívocos.

Abades que se excederam no vinho &
se distraíram com ilustrações proibidas;

poetas pequenos, insignificantes,
maus tradutores a serviço do estado.

Para cada povo a palavra tem um peso.
Cada uma, sua carga. Nada nos diz algumas:

estão na boca diariamente, já sem sabor,
como chiclete repetidamente mastigado.

Algumas não entendemos.
Outras, nossa compreensão estraga.

Estão feridas, cobertas de pus,
muitas sequer foram germinadas.

O equívoco (talvez!) resida no fato de
nenhuma ter saído de sua boca.

Gritam, na rua, em seu nome,
algumas que você sequer conheceu.

3
Quando criança, seu nome pichado no muro –
em neon reluzente, gritando na face das igrejas.

Quando criança, sua marca na lousa,
em adesivos no vidro traseiro dos carros.

Quando criança, sua palavra no rádio,
no pára-choque de pesados caminhões.

Quando criança, sua imagem no quadro:
no quarto de minha avó, um pouco vesgo.

Lembrava um dos generais de Hitler
ou um modelo das propagandas de cigarro.

4
Um homem melhor do que eu.
Melhor do que a maioria de nós.

(O que não é grande coisa
nem fato de extraordinária façanha)

Um homem, ouso dizer. Apenas isso.
Prudência, o poema exige. E me calo.



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* Camaradas, esse poema inédito é o primeiro de meu novo livro. Dei por encerrado o Comerciais de Metralhadora, que ficará na gaveta com metade dos poemas inéditos, aguardando alguma chance real de ser publicado.

News:
* A Revista Diversos Afins completa quatro anos! Acompanho mensalmente a Diversos e tive o prazer de ter um poema nessa edição comemorativa! Sinto-me orgulhoso de fazer parte dessa história! Só me resta agradecer aos amigos Fabrício Brandão e Leila Andrade!
Quadragésima sexta leva – especial de aniversário (4 anos): CLIQUE AQUI

* Aliás, também estou na edição comemorativa de dois anos, vale à pena conferir, com certeza:
Vigésima quinta leva – especial de aniversário: CLIQUE AQUI

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