quarta-feira, 25 de março de 2015

Bula


Nenhuma história de amor.
Só palavras agrupadas
e algo que as coloque em (des)ordem:
um jogo semântico
uma brincadeira burocrática
métrica, rima, divisão silábica
trocadilho, gracejo, piada
qualquer coisa que lhe sirva de base
de desculpa, de álibi.
                  
Nada de vivo, nada que respire.
Só “um arranjo de carpinteiro”
“um trabalho de artesão”
ou outra dessas comparações horrorosas.

Talvez uma frase pronta possa ajudar:
“A palavra horrorosa /
é de uma beleza terrível”
e coisas desse nível para baixo.

Nada. Nada. Nada.
Só palavras aos montes
até formar uma pilha não muito alta:
ninguém vence vivo mais que uma página.

De repente uma última frase.
Sorrateira. Breve. Rápida:
“como o golpe de uma espada”
“feito corte de navalha”
ou outra dessas grandes bobagens.






do livro Poemas é um péssimo título

domingo, 1 de março de 2015

Saudade, a palavra


1
Saudade não se traduz
Ninguém sentia
senão os portugueses
que a espalharam:
pastores, poetas, pulhas

como a gripe, a varíola,
e a sífilis

(até o mundo todo
ficar contaminado).

2
Ninguém sente saudade em russo?
O que corre nas cartas de Maiakovisk?
O que sentiu Gagarin ao ganhar o céu?
Qual era a cor dos olhos de Lênin no exílio?

Uma palavra inaugura tudo?
Inventá-la, ou traduzi-la,
basta para (a palavra) colonizá-los?

3
Tudo, dizem os filólogos,
por errarem pelos mares
(nunca dantes)
deixando para trás as amadas
os filhos, o cachorro, o gato
– saudade é para quem fica

4
Mas e os outros, não erraram?
Gregos e persas pelo Egeu
Fenícios nas praias da China
Vikings cozinhando no Equador
A invencível armada posta a pique
Encharcando de sangue o Pacífico

5

Quanto desse sal?