quinta-feira, 23 de junho de 2011

O silêncio das bibliotecas

Foto: Jim nachtwey

O que pode fazer o poeta ao cantar o Sudão,
uma imensa ferida sangrando no mapa?

Ao modo das agências de viagens
teria ele a coragem de elevar a sua voz

e dizer que apesar dos seus vinte mil órfãos
fugindo pelo deserto
                  aindapraias à serem visitadas?

Fazer como os comerciais e não mencionar
a limpeza étnica que chega ao fim
por não restar mais quem matar? –
ainda que à vontade, herança de Caim
aprimorada com a modernização da máquina
                                                  e da indústria,
                                                  continue viva.

Aproveitar a informação de que de repente cessaram
os estupros, pois nãomais quem seja violado
até a morte? –
             apesar do desejo persistir na carne
             e alimentar o sono dos homens.

Haveria o poeta de dizer que,
tirante mais de vinte anos de guerra civil,
deve-se ir conhecer o Nilo
            em sua majestosa exuberância?

Aconselhar o turista a olhar sempre para o mar,
com suas lentes digitais míopes
e suas câmeras eletrônicas desinformadas? –
            e nunca especular sobre o interior,
            ondeapenas fome e miséria

e o líquido que menos se lamenta ao ser derramado 
                        continue a ser o sangue humano.

E se o poeta não encontrar metáforas que possibilitem
versos narrando o quanto é usual e comum
decepar as mãos de quem cometa algum crime
dentre eles o adultério e o
            consumo de bebidas alcoólicas?

(Poderia o poeta, sempre um pobre mortal, dizer:

Ó País Sem Mãos
Quem Escreverá a tua Derradeira Poesia?

e cometer o sublime erro de crer que o problema
da África possa
                        ser resolvido numa folha de papel?).

E se, de repente, o poeta não achar a frase certa,
que simplesmente uma pirueta estilística,
para dizer algo sobre a mutilação do clitóris,
e em seu trabalho não ser citado
                         a morte por hemorragia
                                   e a certeira infecção generalizada?

Mas como não encontrar
há de se perguntar
com os olhos fixos no mapa
recursos de linguagem para cantar
o ritual comum de utilizar a gilete de barbear
para extrair o prazer do meio das pernas
                                    de pequenas meninas?

Como não encontrar o tom
para cantar os pequenos
            e os grandes lábios
arrancados como pequenos bifes,
num mundo anterior ao éter e a penicilina,
acostumado ao uivo adolescente
de dor e desespero?

Como não achar um verbo enlouquecido
para colorir uma frase que fale sobre
os espinhos de coqueiro usados para costurar
e expulsar tudo o que é prazer de suas vidas?

Como não encontrar um refrão
sobre a cicatriz substituindo a anatomia humana?

Como não conseguir um mote que fale sobre
a pequena abertura deixada para escorrer a urina
                                                  e a menstruação?

E se, esquecido de sua honestidade,
o poeta se olvidar da pergunta
sobre o quanto temos de culpa nisso tudo
com nosso blefe democrático e
            nosso racismo bem comportado?

E se, desmembrado de seu humanismo,
ele se  esquecer de indagar
sobre o tamanho de nossa culpa
ao comprarmos
seus homens como carne em açougue? –
trazê-los para tornar
             nosso açúcar mais doce,
                 com a simples adição de sangue
                                              nas moendas
                        do Império do Brasil!

Talvez o poeta não possa fazer nada pelo Sudão
e sua guerra à beira das bodas de prata.

Pelo Sudão e suas toneladas de ouro e hímens,
pois as palavras não sobrevivem aos
            rios de pus que cortam o seu corpo.

É desculpas que o poeta pede
                            ao se omitir na estante.



* do livro Comerciais de Metralhadora