sábado, 24 de novembro de 2012

1 – Criogenia



b) Ötzi, o Homem do Gelo 

Resta o corpo imolado
guardado nas entranhas
dos Alpes Ötzal                                 

Oferecido em hecatombe
a montanha –
que tem os seus caprichos –
guarda intacta a oferenda

A dieta de raízes
& os ossos de um mamífero               [Ochotonidæ] 
revelam seu cardápio final

O imenso freezer preservando
as tatuagens, a cor dos olhos  [primeira cor na escala de Martin Schultz]
a artrite                                                 [Borreliose de Lyme]

para que o Aquecimento Global
ou um alpinista o resgate
– Lázaro –                                [אלעזר]
de volta à luz dos holofotes



* do livro Elefnte, Editora Anfisbena, 2012

sábado, 13 de outubro de 2012

Poema # 5

Tela: Ernest Descals


Que se desabroche como flor
em um vaso sobre a mesa –
alimentada por lâmpada fluorescente
& água de cloro da torneira

(ou  
às margens de uma estrada
que segue o curso do rio, onde
o sol queima os olhos dos cavalos)

Que se desabroche como flor
no canto escuro da casa –
regada pelo encanamento rompido
& o árduo trabalho intestinal

(ou
no peito do homem
que entre tantos outros caminha
para incendiar a cidade sitiada)

domingo, 23 de setembro de 2012

Elefante - Anfisbena




Amigos, eis aí a minha nova cria. "Elefante" é um livro artesanal, em capa de papelão, buscando ao máximo se afastar desse mercado que só faz produtos padronizados, idênticos. Trata-se de uma edição limitada: somente 30 exemplares. O valor é de $ 15 reais mais correio! Segue um poema:


Quebra-cabeça


1
Com Super Bonder®
por de pé o esqueleto da ave:
ofício repleto de ócio –
horas sobre ossos ocos
roídos por secreta mágoa

(o ar e o uso)

Silêncio do bico desgastado pelo canto
O formol roubou o brilho das penas
Largo gesto de asas, premeditado
O olho olha a parede e não vê

Mente quem diz: parece vivo


2
Palavra por palavra
para por de pé o poema:
bateia roendo o leito do rio

(o anel & o piercing
– de amores extintos –
resgatados para brilharem
   – again and again
sobre uma luz cada vez mais fraca)

Palavra por palavra
para por de pé o poema:
broca em busca da cárie

3
Nada de novo no front
as palavras de sempre
sobre nova maquiagem

como mulher de revista pornô
: punheta para photoshop

Nada de novo no front
o poeta se gabando por
descobrir terra já cartografada –

habitada por centenas
milhares de babacas.


quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Aguardando um título




Os meninos cogitaram acordá-lo

a       p    e d    r    a d as
– típica cena bíblica de expurgo

Se limitaram a cutucá-lo com uma vara


Como não respondia
decidiram consultar um adulto

(no meio do caminho foram
seduzidos por um enorme
           letreiro da Texaco)


Imagem: Remédios Varo

domingo, 1 de julho de 2012

Inventário de um rio # 2



1
Aquele havia sido o meu Eufrates.
Ainda que inexpressivo
– sequer constava no mapa –
não teria havido nada sem ele


(a água era tão pouca
e de tão má qualidade
– pombos sedentos agonizavam
às suas margens –
que nada sobrevivia em seu bojo
[além de vermes aquáticos
e caramujos da esquistossomose])

Aquele havia sido o meu Aqueronte.
Quando corria –
quase sempre estava engasgado
com o cadáver de cão –
conduzia a inframundos
governados por Hades

(pouca era a sua água
e de tão má qualidade –
espessa como a baba de um condenado –
que ela se mostrava incapaz de refletir o céu
[senão simulá-lo
com um azul de olho vazado])

2
Aquele que havia sido o meu rio
se arrasta por galerias de concreto
– como um fantasma do Lete –
roendo pacientemente os pilares da cidade




sábado, 26 de maio de 2012

memóriasàbeiradeumestopimmemóriasà


 estopim                               {meu verso}                

memórias à beira de um estopim,
ou de como vivemos de negações para colher afirmativas

                                  {como uma mão aberta esperando
      um cumprimento que não vem}

memórias à guisa de um motim,
ou de como o fato de existirmos anula a existência de Deus

memórias à beira de um estopim,
ou de como a lágrima que não derramei
 pelas torres gêmeas são verdadeiras

memórias à beira de mim mesmo,
ou de como, em mim mesmo,
sou memórias e fatos – sou concreto e acontecimentos

    {como uma boca aberta
                                      esperando um beijo que não vem}

memórias à guisa de um motim,
ou o motim em torno de minhas memórias?
        :         expludo?

estopim à beira de minhas memórias,
ou de como o pavio descansa em minhas mãos
– e o fogo em tuas
:     explodimos?                                   !

                                   {como uma trincheira aberta
                                 esperando a granada que vem}
memórias a

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Os filhos de Oppenheimer

Oppenheimer e General Leslie Groves

Ele apertava parafusos. Não havia uma finalidade clara nisso. Seu princípio e fim estava ligado a faculdade prática de apertá-los. Assim como havia aquele que de longe – prancheta era seu instrumento – contemplava seu afazer, havia aquele que anteriormente colhera o metal nas montanhas, havia aquele que o derretia e aquele que sulcava em hélice seu corpo metálico, finalizando-o. Eles mesmos, enquanto homens, foram colhidos nas montanhas, retirados do barro, moldados e cozidos por outros operários que desconheciam o fruto de sua labuta.
O que faziam do material anônimo que ele crivava de parafusos? Nunca se perguntara se o preenchiam de alma, se o dotavam de utilidade: atarraxava com suas mãos-aptas-à-chave-inglesa e pronto. Sequer cogitara a origem daquela peça anteriormente moldadas por outros como ele, que também não deixavam marca alguma no produto fabricado. Eram alienados, sobretudo, por não conhecerem a pergunta para a resposta que possuíam.
(Um dia juntaram todos no pátio, apertaram um botão vermelho em algum lugar distante e pulverizaram tudoenorme cogumelo fazendo sombra sobre o cadáver da fábrica. E morreram felizes para sempre.)
The end.




*

domingo, 25 de março de 2012

Elegia

Briton Revière  (1840 – 1920)  - Daniel na Cova dos Leões 
De fato, sua morte não
nos livra de nossa própria morte.

Antes,
nos mostra outras formas de morrer –
comum em todos os lugares
onde há rios de gordura
e grandes nuvens de açúcar

(como se sua morte – e toda a
burocracia em torno de seu corpo –
suspendesse a morte que trazemos conosco)

De fato, sua morte não
nos salva de nossa própria morte.

Antes,
nos mostra como iremos morrer –
verdade apontada
em pequenos sinais diários
e centenas de páginas de hemogramas

(como se sua morte – e todas as
obrigações em torno de seu corpo –
impedisse o andamento da nossa)

sábado, 25 de fevereiro de 2012

Herança

Foto: Rafael Nolli

Não sei se vou dizer
em que caminha a esperança no fruto
                                    ainda na semente
 
ou se digo
– se devo dizer
algo sobre a certeza nas coisas quadradas
que se estendem até se arredondarem.
 
Não sei se falo
aindavoz
de equações químicas que se resolvem em silêncio
                               nos livros que nunca caducam
 
ou se conjecturo
a luta que enfrentaram os que, antes de nós,
domesticaram os grãos a nascerem
próximo ao apelo da mão.
 
Não sei se retrato a terra sitiada
de onde escapou o musgo,
            que cobre as pedras
            como uma pelagem de inverno,
ou se explico
resta um filete de canto
os vislumbres de um futuro próximo,
onde ainda se morre como em
             Comerciais de Metralhadora.
 
Não sei se devo
ou se me permitem –
relatar as dificuldades dos homens nas fornalhas,
derretendo o minério que irá virar bibelô de madame
  ou maçaneta de táxi, e conto,
de mãos postas, a sua dieta fria, isenta de calorias; 
 
não sei se romantizo
os vagabundos noturnos que chamo pelo nome
ou se narro as noites em que sonho com a Poesia
 – a inevitável
                         e acordo de pau duro.
 
Não sei se confirmo
– se é lúcido confirmar
as verdades
sobre a ternura dos ditadores para com suas esposas
                                                                  & amigos
o carinho dos carrascos
 & torturadores dispensados aos seus filhos
    & amantes

ou se, simplesmente, me calo.
 
Não sei,
talvez o poeta esteja mudo
diante dos outdoors do apocalipse.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

[Visões]

Henry Fuseli. Macbeth consultando a visão da cabeça armada, 1793-94

(Há um violão de cordas oxidadas
& um surrado livro de citações

[inseto comendo
o coração dos tímpanos])

(Há uma dose exagerada
& um zumbi vagando pela praça

[errar pelo mundo fantasma
gritando o nome da menina morta])

(Há dias empoçados no calendário
& a vida estrangulada na ampulheta

[com o sangue dos inimigos
apagar o fogo que devora a noite])






*

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Resposta a um poema de Maiakóvski





Eu não sou o homem feliz que talvez exista.


“Liubliú” (Amo), poema anel de Maiakóvski dedicado a Lília Brik
- versão tipográfica de El Lissitski (1923)



 "Dizem que em algum lugar, parece que no Brasil, existe um homem feliz."

Vladimir Mayakovsky, citado em "Maiakovski: vida e obra‎" - Página 9, Fernando Peixoto - J. Alvaro, 1969 - 313 páginas