quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Manifesto

Caramujo Africano (Achatina Fulica) - foto rafael nolli


Plug n’ Play
(Ctrl C, Ctrl V em um tema de M. Bandeira)
  Para Ricardo Wagner

Não me venham com uma poesia que não esteja inflamada de morte: onde nem todo antibiótico do mundo possa surtir efeito; não me venham com uma poesia que não esteja intoxicada, que seja análoga às mensagens dos suicidas, aos bilhetes dos seqüestradores e as cartas-bombas dos que resistem

– e que da boca prefira o beijo à mordida.

Não me venham com uma poesia que não esteja em guerra: esses pequenos anúncios sobre biomas familiares, infestados de bactérias da moral conservadora, que veio escondida no bolor das bíblias e na sujeira da cueca dos padres

– e toda a merda sobre o amor adolescente, que culminou em frustração irreversível, visitas aos psiquiatras behavioristas e horas de onanismo diante do espelho embaçado do banheiro.

Não me venham com uma poesia que não esteja de , caminhando pela boca negra da madrugada, cheirando o cio dos que sofrem por não estarem se matando para alimentar os donos de __________, o proprietário da ___________, e os arrendatários dos ___________; uma poesia que não esteja agora farejando o fedor do sangue dos que foram mastigados pela fome, que não possuem sequer a terra debaixo das unhas

– e toda a bobagem umbilical, encharcada de nostalgia hanna-barberiana: o campo de futebol de terra batida e o jardim privado, que deveriam ter sido varridos da história, sobretudo com seus personagens: futuros técnicos e operadores da moenda capitalista, esfomeada por braços.

Não me venham com uma poesia artificial, criada no semi-árido dos dicionários, no glacial coercivo das gramáticas: essas invenções laboratoriais sintetizando o som das caixas registradoras e o canto das máquinas de refrigerantes

– e tudo aquilo que acalma: o verso que não esteja envenenado para matar the dear president; e tudo aquilo de inútil e irrelevante: adultérios bem-comportados que causam sono nos confessionários e levam ao bocejo os telespectadores das novelas das 6; e tudo aquilo de covarde: o poema que pede por favor para que as pessoas tumultuem.

Não me venham com uma poesia que possa ser lida nos salões sem despertar o pânico e instaurar o caos: essa poesia que o rádio transmite sem tirar o sono de ninguém, que tenha uma pátria e atenda por um nome

– e que da cama prefira o sono ao sexo.



* do livro Comerciais de Metralhadora
* Publicado originalmente na Revista Germina: http://www.germinaliteratura.com.br/l_rafael_nolli.htm

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Impiedoso poema felino


pardal - foto rafael nolli

Quando os gatos se acabam debaixo da roda dos carros,
ou se matam na boca de cães domésticos
– !equilibristas insanos de muros de quintais! –
eu me nego a dormir em paz.

Não por amá-los,
pois desde sempre os odiei
com seus roucos miados boêmios:
insuportável ruído noturno perante o canto dos grilos
e dos galos,
diante do pio das corujas
e o alarme dos carros arrombados.

Não por compadecer de sua extinção.
Lamento, antes, o som de grandes vira-latas
feito saco de ossos e merda espalhados no asfalto
(quando se pode somar à suas tripas e pêlos
uma boa dose de urina ou ódio
e nada alterar em sua desgraça).

Quando os gatos aniquilam-se
em pedaços de carne envenenada,
jogadas por sobre o muro ou deixadas na sarjeta,
eu me sinto diferente de quando
as últimas aves se desfazem nos pára-brisas dos ônibus,
ou de quando o gado confinado
se esquece de sua natureza
e pensa a si mesmo como mais um dos postes da cerca.

Não por prezar-me da sina dos gatos,
pois antes de tudo amaldiçôo-os categoricamente –
esquecido do bom senso, dos modos ou da etiqueta.

Não por indignar-me de restar a eles,
e a sua classe, a corda-bamba dos muros:
por ideologia sempre acreditei ser o mundo dos homens
e de seus fantasmas,
dividido em partes iguais aos primeiros citados.

Quando os gatos são substituídos por seres genéricos,
animais exóticos ou bichinhos de pelúcia,
que não trazem mentira, asma ou alergia ao lar,
eu me nego a dormir em paz.

Não por estar a par dos últimos avanços da medicina,
das técnicas homeopáticas, dos tratamentos alternativos,
das UTIs e do xamanismo em última instância,
mas por saber o restante intratável.

Na noite em que os gatos são subjugados pelas ratazanas
e seus corpos devorados em belos ensopados,
ou servidos em noites de gala em espetinhos de bambu,
nas noites em que crianças amarram bombinhas em seus rabos,
ou os lança aos fios de alta tensão para ver os fogos,
eu me nego a dormir em paz...

Porém, eu durmo.


*

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

A dança das nove


piolhos de cobra (Diplópode) - foto Rafael Nolli

Compreenderia se me dissessem que por ti
homens e mulheres secaram seus American Express:
que os sentimentais se internaram no Prozac,
mergulharam na cachaça
e acabaram por se identificar
com os personagens das músicas bregas,
com os suicidas frustrados
e os figurões às portas da falência.

Aceitaria como verídico se me contassem que por ti
jovens se masturbaram no banheiro do colégio,
esquecidos do medo das mãos ficarem cabeludas,
das espinhas abundarem,
do pau entortar noventa graus.

Eu creria se me dissessem que outros,
os de alma mística
(na veia correndo alguma coisa andina, ou céltica),
foram desesperados aos lupanares,
recorreram à nave central das igrejas
e terminaram encontrando um resquício de ti
na fumaça da maconha, nas mesas de oija,
nos terreiros de candomblé.

Eu relevaria se afirmassem que Balzac & Nabukov
foram visionários que a profetizaram:
quealgo seu, talvez os olhos,
talvez a alma, na arte de Botticelli;
que poetas menores a vislumbraram,
mas incapazes de compreendê-la
terminaram escrevendo
Sonetos Bucólicos à Virgem.

Acataria de bom grado se narrassem em poesia
a saga de homens lacerados
que por ti recorreram ao Merthiolate, à Aspirina,
e sem esperança se entregaram aos divãs,
à loucura mansa dos que cochicham com as sombras,
ou se desnudam na rua.

Jamais duvidaria se me contassem
que uns fizeram de seu nome um mantra,
outros um hino e os exaltados um caminho.

Não duvidaria nunca!
Ó musa, como eu não te amo!


* do livro Comerciais de Metralhadora
Musas dançam com Apolo (Baldassare Peruzzi)
Calíope, Clio,  Erato, Euterpe, Melpômene, Polímnia, Tália, Terpsícore, Urânia

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Fragmento

Ossada. foto rafael nolli


Camaradas,

eu sei: eu sou previsível como um rio:

em meu curso haverá esgotos,

matadouros, indústrias, encanações horrendas,

desmatamentos e cadáveres de suicidas.

Previsível como um rio:

por mais que me contenham, represem-me e me façam diques,

eu hei de escapar por sobre as bordas!



* Fragmento do poema "Sinfonia n 1 para guitarra, fuzil e baioneta" de 12/08/02

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Pose para gravura de Rugendas


Para David dos Anjos Marat

No anno de nosso senhor de 1875,
a nascente imprensa
publicou num canto de página um annuncio
que hoje me estarrece:
tratava-se da fuga de um certo escravo,
de nome Adão, da cidade de Campinas.
O texto dava-lhe uns 40 annos,
estatura regular,
mão secca e falta dum dos dedos dos pés.
Falla grossa e feia.

De immediato uma photographia
se formou em minha cabeça:
por onde andou Adão? Que rumos tomou,
quebrando a unha-de-gato
com as pernas fracas pela lida paquidhermica?
Onde saciou a fome elephantica?
Em que capoeira deitou o corpo,
que sonho, que esperança, que temor,
serviram-lhe de abrigo?

Terá acordado, sobressaltado,
immaginando a aproximação dalgum capitão-do-mato?
Terá buscado um quilombo para resistir?
Como terá se arranjado com a mão secca,
precária para o trato com a pólvora,
incapaz de manejar o revólver?
Terá ouvido falar de Antônio Conselheiro,
arrebanhando gente para viver livre na caatinga?

Porém, não descarto a possibilidade
delle ter sido accomettido,
antes de encontrar refúgio,
pelo rheumatismo ou pela melancholia –
ou por outra affecção mysteriosa
que resolveu se exhibir em hora inngratta:
um emphysema, uma asthma, ou uma syphilis.

Aas vezes gosto de pensar que Adão
saiu aa cata de ouvintes aptos
e numa noite clandestina elevou a falla grossa e feia
para discursar sobre coisas sublimes
a respeito da Liberdade e da África –
sua voz se transformando numa música refrão:
blues ancestral iluminando a taberna
com um rythmo maccio, mystico.

Gosto de imaginá-lo, tão negro, a voz gutural,
elaborando a sublevação, premeditando o confronto:
uma bella barba áspera crescendo em seu rosto,
contornando a bocca isenta de carícias.
Que imagens terá evocado? Terá sido um discurso breve,
dolorido? Ou um apello contundente,
chamando a attenção
para além dos pigmentos da epidherme?

Mas me ocorre que Adão talvez tenha morrido de sede,
perdido na esclerose da geographia sertaneja.
Ou que a guerra bacteriológica,
hoje produto atual da moderníssima indústria do fratricídio,
tenha dissipado a sua vida.

Sim,
o que poderia saber Adão,
negro que fugio dalguma senzala em Campinas,
sobre escravos tomados de peste
que tinham a fuga facilitada
para que encontrassem o foco da resistência
e disseminassem por ali a desgraça que traziam na tosse,
nas chagas, nas roupas?

O que poderia saber Adão, procurado,
sumariamente caçado
(ainda que tudo indicasse sua inutilidade à lavoura,
ao roçado),
sobre um milhão de negros
enviados à guerra do Paraguay para morrer?

O que poderia
ele saber sobre a machina de moer carne humana
que havia sido implantada no sul do continente,
e que estava sendo de extrema utilidade ao Império?

Talvez pudesse contar,
não esqueçamos de sua voz feia,
barbaridades da Casa Grande:
sinhás mutilando mucamas por ciúmes
– naquela época corriam boatos
______de sinistros ensopados de seios,
______de guisados com clitóris servidos aos senhores;
ou talvez pudesse descrever
algo de horrível sobre o assovio do chicote
e o canto pavoroso do açoite.

Talvez Adão pudesse falar de grilhões,
ou de como a igreja acreditava que eles
não eram dotados de alma
e por isso passivos de escravidão! Ou quem sabe
ele soubesse algo acerca das 3. 900 orelhas
que Bartolomeu Bueno do Prado
apresentou como prova de seu êxito
na campanha contra os creoulos!

Terá sobrevivido,
me perguntei em um dia desses,
até o anno de 1888,
quando a lei áurea fôra assinada,
propiciando um novo caminho
para a manutenção da velha elite no poder?

[Engraçado como] não sei nada além de que se procurava,
no anno de nosso senhor de 1875,
por um pobre dum negro que se chamava Adão,
com uma mão secca, sem um dos dedos dos pés,
dono duma voz feia e grossa,
que se meteu pelo interior do país
e se transformou em multidão!


*
Johann Moritz Rugendas - Etnias Negras