domingo, 23 de outubro de 2011

Evocação inútil

Foto: John Sexton
Ó menino que fui
dono de uma infância sabor novalgina
sofrendo delírios por doses excessivas
de xarope para o pigarro e a tosse! –
infantil viagem sob o sol
                        dos trópicos, onde te perdi?

Ó fotocópia do pai
imprudente criatura
amassando com o calo dos pés
os caramujos da esquistossomose:
educado naturalmente por um brejo
povoado por destemidos vermes
que vida era aquela
onde a felicidade se escondia
no pequeno peixe que resistia
                em meio às fezes e ao detergente
                expelidos pelos intestinos da civilização?

Ó minúsculo sonhador
que escapou do coice de cavalos humanizados
pelas placas de trânsito
            e a convivência com as rádios AM –
que motivo havia para se ser feliz
nas axilas daquela cidade
que produzia mangas
           e goiabas melhores do que homens?

Ó incansável infante
que o tempo mastigou com tuas engrenagens
até torná-lo meu antepassado
te procuro tremendo de medo
                     das guerras televisionadas
                                  em horário nobre;
dos vazamentos radioativos
discutidos nas mesas de bar

que estupidez geográfica te levava
a crer que a tua casa seria o próximo alvo?

Ó ignorante de si mesmo
te procuro mijando sobre as flores do jardim
num dia esquecido por todos
por não haver algo de novo nele –
que risos você riu nessas tardes
por nada que valesse a pena
                                     ou merecesse apreço?

Ó curioso moleque
interessado na decomposição dos ratos
na fratura exposta, no fogo nas petroquímicas
me encontro em ti
no olhar     no passo     na voz

e retorno em seguida
            para a merda da vida que será tua. 



do livro comerciais de metralhadora