Em nada me afugentarei da sanidade
se um dia amanhecermos no coração
de uma hecatombe;
se um dia as nuvens se misturarem
ao cogumelo atômico e retirar dele o ácido que
nos pulverizará como gafanhotos;
em nada abalarei meu passo
por entre as fotografias espantadas,
cravadas nas paredes –
atestando o gesto inútil
dos braços levando as mãos à boca:
flash letal eternizando num álbum urbano em retalhos
a silhueta do pavor e do desespero;
em nada diluirei meu olhar
por entre a alma da cidade esvaindo pelos bueiros:
miasma insuportável atraindo os repórteres
os partidários e os urubus.
Em nada me lamentarei
se um dia acordarmos no meio da noite
e pela janela não vermos nada
além do sonho humano configurado em pó:
ó doce momento, te aguardo em silêncio,
pois o vislumbrei em sonhos recentes!
Te aguardo, minha insônia atesta!
Eu vi
a poeira radioativa
trazida com a brisa mais fresca da manhã:
ouvi a tosse das crianças a caminho da escola,
surpreendidas por uma coriza escarlate
que lhes manchava o uniforme impecável –
a vida mesmo escorrendo até a boca infantil:
ranho que eles sorviam com a língua, em vão.
Eu vi
um rastro de lancheiras esquecidas
sendo esmagadas por paquidérmicos tanques,
devorando o trilho sinalizador da volta ao lar.
Eu vi
mãe e pai mortos no ato do beijo mecânico:
contato labial sabor margarina e desgraça –
despedida derradeira
apagada da história humana
num longo segundo envenenado.
Te aguardo em silêncio, ó doce momento:
pois em meu sonho eu vi um menino
te reverter com um gesto mínimo,
pois teu barulho lhe atrapalhava a brincadeira.
______________________________________
* do livro Comerciais de Metralhadora
* poema originalmente publicado na Revista Germina:
http://www.germinaliteratura.com.br/l_rafael_nolli.htm