sábado, 19 de julho de 2014

Demiurgo



Não pode haver pior momento
do que encontrar o poeta escrevendo
sozinho diante do computador
a mesa de madeira manchada
coca-cola, café, cocaína
e uma pilha de livros
quase todas roubados
espólios da biblioteca municipal
um enorme carimbo azul na folha de rosto

Não, não há pior momento
Algum glamour – romantismo tardio –
nos tempos da máquina de escrever
em uma sala mergulhada na penumbra
a fumaça do cigarro subindo, até a lâmpada
Tomado por uma tosse tuberculosa, tenebrosa
o som das teclas, toc toc toc
sem melodia possível

No pintor há algo de vivo no ato da produção:
o movimento do braço
a pose – geralmente falsa – diante da tela
Chegar de repente no ateliê
e vê-lo diante de uma bela sereia
dona de seios de curvas acentuadas
e notar uma mancha azul
ainda molhada, escorrendo no assoalho

Na música também há algo de belo
(no flagra da composição):
os músicos dedilhando as cordas
procurando, em meio a tantas notas, a provável
Talvez role alguma cerveja – ou outro aditivo –
e de repente se faça novos amigos
e se consigo um afeto, uma foda

Com o poeta não é uma boa hora
Não há pior hora, nem pior programa
Talvez algum que lhe equipare
(só que não):
como a reprise, na íntegra,
de um 0 x 0
em jogo sem importância
na primeira rodada
do Campeonato Estadual do Acre









*

sexta-feira, 18 de julho de 2014

Exercício de semântica



Uma calda espessa escorre
apagando a paisagem
o estranho molho molha
a cauda do camundongo
a fachada da sede do AA
a sede do camelo no Saara
a estampa do tecido do tudo
até que não sobre nada sobre nada


Faço um acordo com os deuses do sono

e acordo







*