terça-feira, 25 de dezembro de 2007

ORAÇÃO

Tela de Robert Rauschenberg



XIV
26/12/03


... nessa manhã amena, a felicidade está no trabalho que escraviza; o orgulho, na marmita cheia; porém possível apenas por duas breves horas de descanso e piada: arroz, feijão e quem sabe um bife...

... nessa manhã amena, Cristo está no estômago, fermentando em meio à hóstia mastigada ontem; amanhã, estará ele rodando no córrego do matadouro, em um curso que, dificilmente, encontrará o mar...

... nessa manhã amena, com ordem de supervisor, enxada, arroz com feijão, dai-nos sempre, senhores, essas duas boas horas de descanso e arroz com feijão, amém...





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sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

Memórias à...

Imagem de Man Ray

.....Camaradas, escrevi esse poema no dia 14 de dezembro, a quatro anos atrás. No livro memórias à beira de um estopim ele vem germinado em outro poema, que em breve trarei para cá - ambos escritos no mesmo dia. Bom, não é segredo que estou a mais de quatro meses sem escrever um versinho que seja, então, para celebrar esse tempo passado, onde havia fartura, resolvi publicá-lo.

.....São, sem dúvida, tempos de vacas magras. No entanto, uns ventos bons sopram por aqui. Estou rascunhando um poema sobre a menina que foi trancada numa cela masculina, o caso de Abaetetuba, no Pará.
.....Essa história me assustou, com todos os seus contornos sádicos, com todas as opiniões sinceramente fascistas que vem despertando na imprensa, no seio de setores da sociedade abertamente repressivos. Tudo isso me chocou demais. É uma dessas coisas que nos tira o sono. Creio que o próximo post seja uma parte do poema, que tudo indica serão três!

.....Agradeço a todos as visitas, os comentários, o carinho! Abraços fraternos!



XLV
14/12/03


Beijos vãos em bocas pálidas
abrem em meu peito fendas e vãos.

Desejos plásticos, amores de cilício,
necessidades virtuais...

Beijos elétricos vão e vêm pelos fios óticos


num turbilhão de trojans:
vazam informações em um frio gozo,
milhares de bits escapam...

(Até que dure esse amor,
ou nos desconectemos para sempre


ou outro servidor, eu digo que te amo.)

Enquanto isso,
crianças virtuais aguardam,
armazenadas em discos rígidos,
até que tenhamos úteros sintéticos


ou as impressoras digam amém!




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sexta-feira, 30 de novembro de 2007

Memórias à Beira de um Estopim

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Marc Chagall - La caduta di Icaro, 1974
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POEMA XXII
29/08/03

Funerais para a Poesia, viva! Enterro em caixão vazio. “O corpo se perdeu na correnteza”, dizem os homens do resgate. “O corpo? Destroçou na explosão!”, afirmam os peritos policias. O povo:
– O pouco juízo do concreto lhe baratinou as idéias.
– Ter nascido lhe estragou a vida...
Funerais para a Poesia viva! Cemitério vazio, epitáfio em branco. A Poesia morta não se cravou no mármore frio de sua própria lápide – nem, nas estrelas, foi descansar em paz. Ela atormenta-se no limbo escuro. (A utopia celeste, atômica, a massa de hidrogênio a nauseava.) Cemitério vazio: sem um único sussurro de um orador.
Um dia, ela bate em nossa janela e diz: “Voltei”. Daremos ela por assombração barata, e zás: lá vai ela de novo erguer seu vôo de Ícaro e quedar como Ismália.
Pronto, lá vai ela!




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quinta-feira, 15 de novembro de 2007

Considerações a Respeito de um Homem Nu, em 1926


George Grosz - Os Pilares da Sociedade



Há alguns anos minha avó veio morar conosco. Costume antigo, sempre está contando algumas histórias, que traz fresca na memória. Todas repletas de matéria-prima para crônicas nostálgicas ou papos descontraídos em mesa de bar.

Vivendo em fazendas, ou em pequenas cidades do interior de Minas, fala de como sua avó fora laçada numa tribo de índios – não recorda o nome da tribo ou o estado onde ocorreu o fato; fala de como certa vez fora levada com suas irmãs para a cidade para verem o espetáculo do acender dos postes. A tecnologia, então, consistia numa lamparina movida a querosene e o protagonista da cena um homem qualquer, que vinha acendendo lâmpada por lâmpada, iluminando o caminho.


Recorrente em seus assuntos é uma porção de revoluções que ela presenciou. De repente chegavam homens, ninguém sabe de onde, nem servindo a que propósito, e levavam os jovens para lutas em outros cantos. Ela nunca mencionou se esses voltavam esfarrapados, mutilados ou se não voltavam nunca. Tampouco isso vem ao caso.


Era menina, e a década provável os anos 30/40. Penso sempre que batalhas poderiam ser essas, travadas nesses confins do mundo, onde a vida era completamente diferente da contada nos livros de história e nos almanaques de farmácia. Por aqui a bastilha ainda não havia caído, a Rússia sequer existia, e Napoleão, que tinha banhado o mundo com sangue, poderia tanto ser uma lenda mitológica como um santo católico.
Quase sempre concluo que se trate de disputa de fazendeiros – coronéis donos do mundo – lutando pela expansão de suas propriedades, ou promovendo um rotineiro massacre nos latifúndios vizinhos. Uma dessas aventuras, é certo, se trata da segunda Guerra Mundial. Essa, devidamente documentada, passou em sua Macondo recolhendo as motos e os veículos que supostamente seriam enviados para a Europa. Meu avô tivera a sua motocicleta confiscada. Se ela fora para a Europa servir de cavalo motorizado para as tropas aliadas ou se ficou nas mãos de algum burocrata, passeando nas ruas da capital, não é possível saber.


Porém, nenhuma dessas histórias me tocou mais que a saga de Mané Pelado. Num momento em que a ordem do dia consistia em buscar lenha nos campos repletos de cascavéis e cuidar das criações, alvo constante dos predadores naturais e das intempéries da natureza, a paz estabelecida era quebrada pela figura esguia, completamente nua, que ficava rodeando as casas e ao primeiro sinal se lançava às matas e sumia.

Por um descuido, pode parecer que estamos falando de uma assombração, que naquela época realmente existia aos montes. As histórias de lobisomem, de extraterrestres, são um caso a parte. Mané existia mesmo e tudo indica que era um louco, fugitivo de algum lugar, ou, em outra hipótese, um abandonado pela família que sobrevivera comendo raízes, roubando ranchos, capturando pequenos animais.

Mas quem era esse ser que costumava invadir as casas quando todos saíam para a colheita, ou à pesca, para beber o leite recém ordenhado? Quem seria esse homem que aproveitava os descuidos para invadir as residências, comer o pão, beber a pinga, tirar um cochilo em cama quente? Seria uma vítima dessas revoluções, com a sanidade ferida em combate diante da visão do holocausto? Seria um pensador, que um pouco atrasado, mas sozinho e com os recursos que possuía, percebera que a vida que se levava nas cidades era um câncer e o mundo caminhava para o abismo?


Conta a minha vó que, certa vez, sua mãe ao notá-lo se esgueirando nas imediações da casa atirara nele com a carabina. Ele saindo em fuga, para voltar no outro dia, é uma imagem que me impressiona muito.


O que foi feito dele, ninguém sabe. Por certo, onde caiu morto ficou até que a natureza encarregasse de consumi-lo. Encontrado por caçadores, talvez tenha sido enterrado na beira de algum riacho, num túmulo coberto de pedras que o musgo engoliu. Em última instância, pode-se crer que tenha recobrado a lucidez e retornado para casa, onde filhos e mulher já haviam se esquecido do luto.


No mais é isso, ficando cada um com o fim que mais lhe apetecer.





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quinta-feira, 1 de novembro de 2007

ENSAIO

Tela de Nelson Magalhães Filho

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Sobre a poesia contemporânea, parte 1


Não é de hoje que a poesia tem se distanciado do público leitor. Não bastasse vivermos num país que pouco lê, há ainda, por sua vez, uma onda de poetas tomados de aversão ao leitor. O problema é sistêmico. Não há verbas para educação. Para a cultura, muito menos. A iniciativa privada, iletrada, dotada da visão mais selvagem do capitalismo, está disposta a colaborar em troca de lucros, de marketing, de maior visibilidade diante da opinião pública. A poesia que não vende, que não pode ser alvo da mais-valia, vai perdendo espaço para a auto-ajuda, sobretudo a místico-empresarial, para a vernissage produzida sobre encomenda para a coluna social – abstratos prêt-à-porte, enfeites para sala e cozinha; reminiscências pequeno-burguesas sobre os ares da Dysneilandia, e a exaltação do estado de tolerância zero nas mãos de Rudolph Giuliani.

O apego formal, a busca de uma construção rigorosa, a abolição dos sentidos, do discurso, são partes importantes no processo que está em curso e que visa tão somente expulsar a poesia da vida das “pessoas comuns”. A poesia deixou de dizer algo, para se tornar algo. Artigo de luxo, incompreensível, que tem por finalidade ser objeto de admiração para iniciados. Numa sociedade que abole o lúdico e que trancou Dionísio no porão, a poesia feita de poetas para poetas é um experimento laboratorial com um fim em si mesmo. Não serve para nada, a não ser como experimento laboratorial.

O que mais soa constrangedor nessa pretensa “nova poesia” é a aura que se defende de novidade. Não há nada de novo no front. É, quando muito, mais um retorno ao passado clássico, como houve com o Arcadismo, com o Parnasianismo, com a Geração de 45, e assim por diante. Hoje, o foco escapa “do que se diz” sendo de importância apenas “como se diz”.

Por outro lado, é bom ressaltar que não se trata – não nos enganemos – de um culto ao hermetismo de Salvatore Quasimodo ou Marllamé. Ainda que haja, sobretudo a respeito de Marllamé, uma enorme veneração, essa safra de poetas está mais próxima do acaso criativo de Jackson Pollock. Marllamé, como já foi devidamente observado por José Lino Grünewald, era antes um “autor exigente” a um “autor difícil”. O que temos no ar viciado dessa nova safra são autores apenas difíceis. Não possuem o trabalho de signos de Marllamé, muito menos a lapidação que possa revelar a idéia escondida no fundo do poema. Grosso modo, a estética – dos cosméticos – impregnou as páginas dos livros.

Retirar os méritos do Concretismo, por exemplo, ao ambicionar expulsar o elemento discursivo da poesia não é o caso. Até mesmo porque há, nessa ousadia, um momento onde o verso foi repensado. A possibilidade do debate, a abertura da discussão é sempre válida. Sobretudo no tempo onde impera a visão unilateral da mídia e a exaltação do monologismo dos sectários. Mas crer que a experiência concretista é o modelo único e correto já é outra coisa. Filiando-se a uma tradição de pensamento, o autor estará, por sua vez, excluindo as possibilidades de outras tradições. A experiência de vanguarda, nesse caso, é ainda útil e legítima, desde que diluída, assimilada a outras possibilidades.

O mundo é novo a cada segundo. A velocidade das mídias, o intercâmbio de culturas só exigirá uma poesia nova, que esteja a par de tais mídias e compreenda a dinâmica desse mundo. Mas o que se tem é uma poesia artificial, que flutua dentro de uma bolha de isolamento, respirando apenas nas páginas dos dicionários, nos manuais de transgressão etimológica. Já é mais que sabido que a “poesia destituída da realidade social não vale mais que um saco de alpiste”, como já foi dito no Manifesto Potencialista.

A incapacidade de compreender o mundo, ou o que Marx chamaria de auto-alienação, pode explicar essa onda de poetas que acreditam que Fukuyama estava, em absoluto, correto ao decretar o fim da história. O mundo está pronto e compreendido e o capitalismo já é um estado permanente e irreversível. Resta então, para esses, uma poesia que não esteja vinculada com o que acontece a sua volta, posto que nada, em tese, acontece.

Convén voltarmos a Marx, que demonstra que não basta, por sua vez, simplesmente interpretar o mundo, e sim modificá-lo. Mas isso já seria pedir demais para uma geração que voltou ao vaso grego, vazio.


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terça-feira, 23 de outubro de 2007

PÃO E POESIA: Injeção de poemas, nas artérias da realidade


“A revolução trará não somente direito ao pão, mas também à poesia”
Trotsky



Camaradas, Diovvani Mendonça, do blog Poeminhas para matar o tempo e a dor de dente http://www.diovmendonca.blogspot.com/ está a frente de um projeto muito bacana, que se chama Pão e Poesia.
O objetivo deste é publicar autores novos, nos saquinhos de pão - o cliente que habitualmente compra o seu pãozinho levará de brinde um poema. A loucura circulará inicialmente na cidade de Contagem, na grande BH, com tiragem de 300.000 embalagens! É bacana ou não é?


O movimento recebeu adesões importantes. Há uma forte participação de autores portugueses, que levarão a idéia para as padarias lusitanas.

Quem sabe o próximo passo não seja lutar para incluir livros na cesta básica?

Interessados devem enviar os seus poemas para seleção - até 30 de novembro - para o seguinte e-mail: pao.poesia@yahoo.com.br

Abraços e bom café da manhã a todos!


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quarta-feira, 26 de setembro de 2007

COMERCIAIS DE METRALHADORA

Maurice Vlamick - Restaurante


Meus camaradas, está no ar a nova edição da revista Germina que trás uma seleção muito significativa de meu novo livro "Comerciais de Matralhadora". Poemas inéditos, aliados a imagens fortes. Aliás, a revista sempre foi impecável no quesito artes plástica! Estou muito satisfeito com o resultado! Visitem, tragam as suas impressões aqui para as nossas trincheiras! Abraços!



http://www.germinaliteratura.com.br/l_rafael_nolli.htm








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quinta-feira, 6 de setembro de 2007

ESPARSOS EM MAIO DE 2003

tela de Dino Valls - Retablo Grávido

1

Vencendo barreiras e himens,

galgando distâncias e reentrâncias,


superando obstáculos, seios e vaginas,

plantando pênis, semeando porra:


o sexo de ontem faz os homens de amanhã.


2

Elaborando idéias e césio 137,

construindo bases aéreas e área 51,


demolindo pastos, homens e culturas,

plantando urânio, napalm e tecidos bacteriológicos:


o imperialismo de ontem faz os revoltosos de amanhã.


3

Refugiados em florestas, haxixes e cocas,

escondidos em escombros, fuzis e desertos,


falando o latino, o soviético, o molotove,

arando terra invadida, amolando foices no escuro:


todos os caminhos que nos separam da liberdade

passam pelo cabo Horn.


4

Carregando trouxa de roupas e embargos econômicos,

superando estiagens e dívidas externas,

nós prosseguimos nos fechando.


Levando compras e ordens,

vivendo de especulações, inflações e salários mínimos,

nós prosseguimos nos escondendo.


E não haverá casa, muro ou vala,

não restará refúgio, guetos ou exílios:

e nós prosseguimos atados por correntes e nós.





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segunda-feira, 20 de agosto de 2007

Fragmento Retirado de Uma carta Falsa

foto de Leila Lopes


Para Wewerton (Caim)

Quem virá me salvar? Quando? Y como? As preces se perdem: o deus-cavalo saxão ñ compreende minhas psicopatologias: quem vem, herói ou vilão, Jesus ou Judas, reerguer-me da briga q se arrasta pelas ruas y q tem sido a minha vida: quem vem, y como, levantar-me d uma queda q se eterniza no impacto com o chão: levantar-me d um tombo fatal, sistêmico: caio, cai minha sanidade, caio, despenca meu juízo – pensei, ontem, em dizer uma palavra mágica, q guardo há muito, q destruiria todas as coisas (voaria antes, eu vislumbrei isso, como o Enola Gay voou [em seu útero um ovo] por sobre as cabeças sem chapéu dos homens); pensei ontem, verbo mágico se debatendo em meus dentes em cela, q essa palavra seria ouvida nos manicômios como um chamado insano à realidade (isso se denomina poesia!): quem? como? onde? virá, se é q se pode, se é q se efetiva, destituir-me d minha dor, levá-la d mim? (Aborto para o lixo; mentira ao coração; ódio aos q vivem em cólera [levá-la como se leva o rosto ao soco, como se lava o sangue das mãos após a carícia dos estúpidos: como se conduz às vísceras o cabo da faca...]). Por um instante, antes d o apocalipse deflagrar, escuto um fallen angel executando um solo d trombeta numa flor d beladona: quem poderá, tira, bandido, Montechio ou Capuleto, dos Elíseos ou dos umbrais, separar-me d meu medo, desencravá-lo d mim? – adestrá-lo, deixá-lo dócil como um lobotomizado a passear sem poder algum em meio aos meus pensamentos sem q os transfigure em verde, sem q os potencialize em dor y os converta em dúvida? Como y quem?



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terça-feira, 7 de agosto de 2007

Parceria

Ilustração de Vera Basile feita especialmente para esse poema



11/02/04


Cantar não um bicho como casca que cobre a alma

mas em profundidade de fome.

Esse que não é um bicho que se arrasta na terra,

com várias patas

mas um bicho que atende por humano

e tem o sublime hábito

(culpa dele mesmo?)

de se alimentar com calafrios no estômago.

Pois é ele a minha matéria,

não o homem em unidade

mas em estado de multidão.



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sábado, 28 de julho de 2007

Do livro Memórias à Beira de um Estopim

Foto de Pierre Verger



22/12/03

O homem que fugiu de casa ontem passou pelo meu verso numa correria desatada – os cabelos desgrenhados, a roupa esfarrapada. Em seu ouvido, ainda ecoava a fome de seus filhos esquecidos em dois cômodos e um banheirinho fedendo urina, fezes e vômito.

O homem que fugiu ontem de casa resvalou um olho cansado ao passar pelo meu poemasua dor o levará a São Paulo, ou a outra grande cidade que fede a gás carbônico e vagina; o levará aonde disseram ser o dinheiro mais verde e o bolso menos fundo.

Ao homem que fugiu ontem de casa e que, por um momento, estacou-se diante desse poema, eu tenho apenas o meu respeito, nada mais; mas saiba que aqui também estou eu, escondido desde o momento em que fugi e resvalei com a fome dos que plantam, pescam e colhem a mesa que enfeita nosso jantar e produzem com suor e lágrimas o sono tranqüilo de nosso vizinho...



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quarta-feira, 18 de julho de 2007

Algumas palavras sobre um idiota da mídia

Foto do cartaz do filme Reds
(ou de como a Televisão me deixou burro muito burro demais!)


O Vidiota, romance de Jerzy Kosinski consegue resumir toda uma população em um único personagem. E consegue mais que isso. Ao tratar de um menino órfão, criado isolado do mundo, tendo por companhia um jardim para cuidar e uma televisão para assistir, o autor sintetiza uma gama de pessoas escravizadas pela mídia, que não conseguem viver senão diante da tela. E é na tela que se vêem espelhados, na tela onde não buscam respostas para nada, apenas se anestesiam pelo brilho do aparelho e seus recursos de sedução.
Em termos de literatura o trabalho é de uma simplicidade que chega a dar nos nervos. Uma narrativa morna, que a todo instantepistas que irá esfriar. No entanto, o leitor é compensado com uma história vigorosa, com um quê de profética.
O livro é fácil de se ler, mérito que se deve a narrativa linear, de linguagem simples e fluente. Existe, aliás, uma bem sucedida adaptação para o cinemaroteiro premiado, adaptado pelo próprio Kosinski. Aqui no Brasil o filme, que tem Peter Sellers no papel principal, se chama Muito Além do Jardim. As curiosidades cinematográficas não residem apenas no fato dessa película ser o último trabalho de Sellers. Kosinski, que viria a se matar no ano de 1991, aos 60 anos de idade, fez o papel do revolucionário soviético Grigory Zinoviev no filme Reds, de Warren Beatty. Kosinsk era polonês, naturalizado americano.
O livro é de 1971 mas poderia ter sido escrito agora, nas costas do último Big Brother ou de outro reality show qualquer. Ao falar de um homem que foi educado pela TV, que tem no controle-remoto o poder de mudar o rumo de sua vida a todo instante, a obra acaba retratando com fidelidade assombrosa o poder da mídia de criar os seus ídolos.
O enredo é simples: numa dessas fabulosas manobras do destino, Chance tem seu nome citado na TV pelo presidente dos EUA, o que o torna a figura central de um país em crise, que busca na figura emblemática do jardineiro as respostas para todos os problemas do mundo. Porém Chance não passa de um homem inculto, que não sabe ler e desconhece qualquer coisa que não seja a poda da grama, o combate às pragas, e a aplicação do adubo. A proximidade com o que vivemos não é mera coincidência. Frei Betto nos fala dos imergentes, ou melhor, os novos-pobres, “classe alijada do acesso à terra ou à casa própriaque sãoclientela cativa de astrólogos e tarólogos, cultos neopentecostais e orixás, literatura de auto-ajuda e movimentos esotéricos”. A TV exercendo fascínio sobre eles com suas fórmulas empacotadas e entregues para todo o Brasil num piscar de olhos. Figuras criadas nos estúdios, em edições de imagens, sem discurso nenhum, mas que se bastam tendo um fim em si mesmos, representado-os in veritas.
Não é isso que vem fazendo esses programas? Apresentando nulidades a serem seguidas como exemplo no campo da moda, do comportamento, etc? Não é isso que vem fazendo cada um dos dez ou doze canais disponíveis gratuitamente: forjando com o pior dos metais os heróis que serão noticiados nos jornais ao lado de matérias que eles sequer compreendem, sendo semanalmente capa de revistas que não lêem?
Ainda hoje mesmo temos programas catapultando os novos cantores, que se não estivessem na telinha nunca chegariam a gravar um CD. Temos, três ou quatro vezes por dia, programas promovendo ao vivo, nos telejornais, nas competições esportivas, aquelas que amanhã estarão nuas nas revistas pornográficas, rendendo milhões e milhões para a indústria da masturbação. Essas existindo apenas diante das lentes objetivas, cobertas de maquiagem e restauradas através do photoshop! Recursos capazes de corrigir qualquer incomunicabilidade possível.
Jerzy acaba por tratar desses personagens que não existem de fato. Simulacros criados pela mídia para atender as suas necessidades de mercado e que muitas vezes vão além desse propósitosem nunca deixar de existir apenas enquanto imagem gerada pela TV e por ela modelada.
O que ocorre com Chance, nosso humilde jardineiro, ao ser seriamente cogitado para uma cadeira na Casa Branca não deve ser novidade com algo ocorrido aqui no nosso lado do hemisfério. O link é inevitável.
A leitura é válida. E valiosa.


Camaradas, há um ensaio na Net, disponível em e-book, que se chama Ser Nada – George W. Bush: um Simulacro Presidencial”, de Carol V. Hamilton, que eu recomendo. Não recomendo como acho que se trata de uma leitura obrigatória. Trata-se de um trabalho que faz um paralelo entre Chance e Bush, tratando com muita propriedade da inexistência de ambos! http://www.livrosdeareia.com/sernada.htm

Outras leituras sobre mídia:
Manifesto Potencialista, vários autores
Cidadão Kane, filme de Orson Welles
Muito Além do Cidadão Kane, documentário da BBC de Londres
1984, livro de George Orwell

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