segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Pose para gravura de Rugendas


Para David dos Anjos Marat

No anno de nosso senhor de 1875,
a nascente imprensa
publicou num canto de página um annuncio
que hoje me estarrece:
tratava-se da fuga de um certo escravo,
de nome Adão, da cidade de Campinas.
O texto dava-lhe uns 40 annos,
estatura regular,
mão secca e falta dum dos dedos dos pés.
Falla grossa e feia.

De immediato uma photographia
se formou em minha cabeça:
por onde andou Adão? Que rumos tomou,
quebrando a unha-de-gato
com as pernas fracas pela lida paquidhermica?
Onde saciou a fome elephantica?
Em que capoeira deitou o corpo,
que sonho, que esperança, que temor,
serviram-lhe de abrigo?

Terá acordado, sobressaltado,
immaginando a aproximação dalgum capitão-do-mato?
Terá buscado um quilombo para resistir?
Como terá se arranjado com a mão secca,
precária para o trato com a pólvora,
incapaz de manejar o revólver?
Terá ouvido falar de Antônio Conselheiro,
arrebanhando gente para viver livre na caatinga?

Porém, não descarto a possibilidade
delle ter sido accomettido,
antes de encontrar refúgio,
pelo rheumatismo ou pela melancholia –
ou por outra affecção mysteriosa
que resolveu se exhibir em hora inngratta:
um emphysema, uma asthma, ou uma syphilis.

Aas vezes gosto de pensar que Adão
saiu aa cata de ouvintes aptos
e numa noite clandestina elevou a falla grossa e feia
para discursar sobre coisas sublimes
a respeito da Liberdade e da África –
sua voz se transformando numa música refrão:
blues ancestral iluminando a taberna
com um rythmo maccio, mystico.

Gosto de imaginá-lo, tão negro, a voz gutural,
elaborando a sublevação, premeditando o confronto:
uma bella barba áspera crescendo em seu rosto,
contornando a bocca isenta de carícias.
Que imagens terá evocado? Terá sido um discurso breve,
dolorido? Ou um apello contundente,
chamando a attenção
para além dos pigmentos da epidherme?

Mas me ocorre que Adão talvez tenha morrido de sede,
perdido na esclerose da geographia sertaneja.
Ou que a guerra bacteriológica,
hoje produto atual da moderníssima indústria do fratricídio,
tenha dissipado a sua vida.

Sim,
o que poderia saber Adão,
negro que fugio dalguma senzala em Campinas,
sobre escravos tomados de peste
que tinham a fuga facilitada
para que encontrassem o foco da resistência
e disseminassem por ali a desgraça que traziam na tosse,
nas chagas, nas roupas?

O que poderia saber Adão, procurado,
sumariamente caçado
(ainda que tudo indicasse sua inutilidade à lavoura,
ao roçado),
sobre um milhão de negros
enviados à guerra do Paraguay para morrer?

O que poderia
ele saber sobre a machina de moer carne humana
que havia sido implantada no sul do continente,
e que estava sendo de extrema utilidade ao Império?

Talvez pudesse contar,
não esqueçamos de sua voz feia,
barbaridades da Casa Grande:
sinhás mutilando mucamas por ciúmes
– naquela época corriam boatos
______de sinistros ensopados de seios,
______de guisados com clitóris servidos aos senhores;
ou talvez pudesse descrever
algo de horrível sobre o assovio do chicote
e o canto pavoroso do açoite.

Talvez Adão pudesse falar de grilhões,
ou de como a igreja acreditava que eles
não eram dotados de alma
e por isso passivos de escravidão! Ou quem sabe
ele soubesse algo acerca das 3. 900 orelhas
que Bartolomeu Bueno do Prado
apresentou como prova de seu êxito
na campanha contra os creoulos!

Terá sobrevivido,
me perguntei em um dia desses,
até o anno de 1888,
quando a lei áurea fôra assinada,
propiciando um novo caminho
para a manutenção da velha elite no poder?

[Engraçado como] não sei nada além de que se procurava,
no anno de nosso senhor de 1875,
por um pobre dum negro que se chamava Adão,
com uma mão secca, sem um dos dedos dos pés,
dono duma voz feia e grossa,
que se meteu pelo interior do país
e se transformou em multidão!


*
Johann Moritz Rugendas - Etnias Negras

27 comentários:

Cláudia Cardoso disse...

Rafael!
Que lindo esse poema. Queria ser como você, tirar o foco do meu umbigo e finalmente enxergar a figura do outro com tamanha beleza. Parabéns.
Você recebeu meu livro? Já enviei pelo correio.
Grande abraço.
Sua prima.
Cláudia Cardoso

Márcia de Albuquerque Alves disse...

Oi Rafael, acabei de te ler no Poema Dia, simplesmente, perfeito. adorei! bjs

Isaias de Faria disse...

ótimo poema. não perde o ritmo, descritivamente poético. abraço meu caro. isaias

Carlos Augusto disse...

Muito bom, camarada!!

Cássio Amaral disse...

Muito bom Nolli, imagens fortes, construção perfeita e inteligente.

Abração meu véi. Saudade sua.

jorge vicente disse...

Camarada,

para que não restem dúvidas. Você é um dos melhores poetas brasileiros contemporâneos! Genial esse poema!

Estarrece. Sangra. Faz chorar. Fere.

Obrigado pela vida que está aí dentro!

Jorge

Bárbara Lia disse...

oi Nolli, você nos leva pra dentro do poema, muito belo.
gde abraço!

Graça Carpes disse...

Rafael, emocionante. Lembro-me da primeira vez em que fui à Bahia, e também em Ouro Preto, quando percebi que a presença da dor dos escravos é ainda muito forte. Algo como... Ser remetido ao tempo de então. Aqui, você retrata fielmente esse tempo, inclusive ortograficamente. É pouco expressar o que digo. Mas, infelizmente, faz parte da história humana.
Sua poética é perfeita!

nydia bonetti disse...

Tua poesia é quase visual, Rafael. Nossa... Eu não te leio, te assisto. E que imagens... beijo!

célia musilli disse...

Impressionante o resgate que vc faz de um fato histórico através de um poema que é uma viagem à imaginação e, ao mesmo, a uma infeliz realidade...Um beijo!

~*Rebeca*~ disse...

Essa ferida nunca adormece.

Jota Cê

Vera Basile disse...

Nolli, já disse isso outras vezes mas repito: se todos os jovens tivessem a sua sensibilidade o mundo seria muito diferente, justo e belo.
Achei fantástico esse poema.
abs.

Adriana Godoy disse...

Nolli, finalmemte consegui um tempo pra te ler. E não me arrependi. Que beleza de poema: uma mistura de história, ficção, poesia, enfim, tenho que ler de novo...beijo

Robson disse...

e aí camarada NOLLI? Estamos Há cá!

Fabrício Brandão disse...

Querido amigo, este é, sem dúvida nenhuma, um de seus melhores poemas. Tem uma linguagem provocativa, crítica, e é fruto de uma peleja histórica, uma dívida que o Brasil varonil tem com seus "degredados" de ontem e hoje.

Belíssimos versos! Emociono-me com tamanho domínio do texto, com a condução dos arremates. A proposta é preciosa.

Forte abraço e parabéns pela lucidez dos versos!

Caim disse...

Como todas as vezes que entro aqui uma bela surpresa. Precisaria de um elogio esse poema ou o poeta que o fez? Acredito que tanto o poeta quanto o poema sabem exatamente do que são feitos! Mais como um elogio sincero nunca atrapalha. Parabéns poeta!

Anônimo disse...

Bacana rapaz. Você conhece "O caso dos dez negrinhos" do Braulio Tavares? Acho que cê vai gostar. O Solano Trindade também é porreta. Ele podia ser filho desse escravo. Abração e apareça

Ricardo Wagner Alves Borges disse...

Gostei tanto que fiz uma chamada pr'este poema no Twitter!*

Evoé.

RW.

____________________
* E olha que tenho notórias e sólidas inclinações extremo-direitistas! Não ria.

Sidnei Olivio disse...

Fantástico, Nolli. Tem a assinatura da sua sensibilidade e visão além dos olhos. Grande abraço.

Glauber Vieira disse...

Uau, que texto denso! Gostei muito, prende a atenção do início ao fim. O fato de escrever com algumas palavras com a grafia antiga foi também um recurso interessante, para nos situarmos ainda mais na época descrita.

L. disse...

Ma ra vi lho so.
Nada melhor do que enxergar com poesia...

~*Rebeca*~ disse...

É uma mescla tão bonita de sensibilidade, são tantos assuntos num só poema, muita riqueza nos pensamentos poetizados.

Noite de luz.

Rebeca

-

vieira calado disse...

Ora aí temos um exemplo do que deveria ser o novo acordo ortográfico.

Era bem mais elegante a ortografia desses tempos!

Um forte abraço

Barone disse...

Show!

Maria disse...

CLAP CLAP CLAP

!!!

Adrian'dos Delima disse...

Estupendo, apenas isto.

Adrián de Limes, ou Adriandos Delimes

Anga Mazle disse...

Excelente poema, Rafael.

O tema é um achado e o desenvolvimento inspiradíssimo.

Muito bom conhecer o seu blog.

Um abraço