segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Genealogia

Para Eduardo Martins Nolli Duarte
As raízes
1
Descendo de uma linhagem de homens que eram
chamados pelo nome do rio mais próximo
ou tomavam de empréstimo o nome de alguma árvore. 
Como ela, mantinham-se íntegros,
anônimo pelos séculos
sem registrar os seus frutos em cartório
sem adoçá-los com aspartame
enfeitá-los com códigos de barra
& impor tarifas de exportação.

Mas vieram aqueles que nos batizaram
             com as águas de um rio da Judéia;
mais tarde, com  água mineral, engarrafada,
que não era de lugar nenhum:
brotava do seio de uma máquina que subjugava o solo
esvaziando o conteúdo que ele escondia
para os homens que ainda estavam inexistidos –
fervilhando nos rugidos das onças
              no assovio do vento.

Nada mais dizia respeito às nossas raízes.
Quando gritávamos por nossos irmãos
os inimigos
que nos massacrava, violentava,
respondiam de prontidão.

éramos donos dos mesmos nomes
o sangue na mão compartilhado nos
cumprimentos matinais.

2
Eu estava entre os portugueses
em suas fileiras de caravelas:
ensinei aos índios o beijo que apodrecia a boca
& que corroia os dentes
o abraço que desfigurava as carnes
(que deixa em rubor toda a técnica
 homicida hoje empregada)
eu trazia cínico,
em nome de Deus e da Rainha.

Mas era pouco a varíola e a gripe.
Matar os peixes dos riachos
transformando sua água em sangue,
cobrindo os leitos com cadáveres, era pouco.

Pouco foi a chuva futura
            que derretia a calha das casas
e envenenava as crianças –
             que insistiam que a felicidade
poderia estar na rua, que não era de ninguém.

Mas era. O nome na placa indicava.

3
Descendo de mulheres
que compactuavam com as ramas
                        o segredo da cura.
Sabiam extrair da menor partícula da mata
a verdade sobre o todo.

Contemplaram um dia, na face da água,
uma terra desolada que não prestava
sequer para enterrar o cadáver dos chacais
o filho de seus ventres esterilizando o chão
            com o toque dos pés.

Porém, antes que pudessem fazer algo,
havia sido decretada a era do estupro.

4
Tampouco deixei de ser contemplado
quando da expropriação das terras
que passaram a ser nossa
desde que nos fosse possível assassinar
cada um dos que nela viviam:

insolentes & preguiçosos homens
que não haviam inventado a guerra
e viviam apenas do que precisavam.

E assassinar nunca fora problema
para quem tinha na pólvora o poder
& na cruz o álibi.

5
Um selvagem impressionado
o homem de quem descendo
tremendo ao ver a ponte
que atravessava o Rio Apurimac.

Um bárbaro, meu predecessor,
que acreditou que a bacia amazônica
era formada por rios de ouro

(pouco antes temera o oceano
que escondia monstros sublimes &
era salgado pelas lágrimas dos náufragos).

Margareth Tacher agradece.

6
Descendo de uma linhagem de homens escuros como o asfalto, velozes como os carros: homens que foram assassinados em suas pátrias e trazidos para cá, para comerem a areia da praia e se tornarem donos de dores não-catalogadas.

Os que ficaram pelo caminho foram estraçalhados pelas lâminas dos corais, viajaram pelo intestino de tubarões, sedimentaram seus sonhos junto ao assoalho encharcado do mar.

Foram lançados de navios como carne podre: mulheres, homens, crianças, reis, heróis entregues ao dorso suado do oceano e suas milhares de garras.

Para futuro semelhante foram arrastados os que a travessia preservou:
– para cultivar os bigodes dos coronéis
– para manterem impecável a fazenda das mocinhas
– para financiar os estudos em Paris ou Coimbra
de vagabundos jovens advogados.

A língua que colocaram em suas bocas não podia ser entendida pelos seus deuses, enfurnado no alto-demais das nuvens – pululavam jesuítas com seu livro que pesava uma tonelada.



Aqui ficaram sozinhos os homens de quem descendo: a solidão que havia era a mesma de todo lugar – eles apenas a aperfeiçoaram.

4 comentários:

Joakim Antonio disse...

Encrava na carne e aperta os olhos. Banzo em letras!

Parabéns Nolli!

Cássio Amaral disse...

urro no uivo.

Abraços.

LIV disse...

forte como um uivo!abraços.

Carlos Augusto disse...

Arrepio sempre que leio. Poemaço!