quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

Sinopse de uma ameaça

A Morte Cansada (Fritz Lang, 1931)

Quisera me matar por nada. Era o seu prazer dizer vou te matar. Adorava explicar como estrangularia – ornava as palavras com gestos expressivos, usando as duas mãos que possuíam calos de punheta e canivete. Os dedos se retorciam como as raízes de um mangue, enquanto a boca torta defecava palavras empoeiradas. Vinha de seu âmago o ódio que lhe tomava as rédeas da razão, que era pouca e epiléptica. O seu vou te matar, nascia quase no intestino grosso e subia, emporcalhando de merda o corpo acima – se tornando pedra na subida severina; feria as paredes da garganta e arranhava o esmalte dos dentes: nasalava sua voz ao sair-lhe pelas ventas, deixando seus dizeres quase engraçados – se não fossem trágicos.
Estava , diante de mim, seu dedo espichado e retorcido. Caranguejos passeavam debaixo da unha, que quase tocava meu nariz, coreografavam um balé ridículo, em marcha ré.
E era por nada, todo aquele ódio. Vou te matar e pronto. Não iria roubar relógio, bater carteira, sequestrar mãe, sodomizar as irmãs, mijar nos pôsteres na parede. A ameaça era certeira e precisa. Quando se distanciava um pouco de seu objetivo, dizendo em volteios sua ira, essa se abrandava em meio a um vocabulário reduzido de expressões atômicas: as palavras tornavam-se turvas, desprovidas de analogiamas sabido como era, logo voltava a frisar seu intento e evocar a morte em carne e osso como companheira de empreitada.  
Ninguém podia duvidar que em breve haveria um corpo estatelado no chão, retorcido de dor. Tudo era certo: vou te matar e ponto! Ele achava que me caía bem um cabo de faca saindo pelo umbigo. Parecia haver simetria nessa imagem, o sangue escorrendo, emboçando no chão – o esguicho manchando o couro do tênis: sabão nenhum haveria de limpá-lo! Ninguém duvidava que alguém sairia com o apêndice perfurado ou uma tripa dependurada: todos se perguntando, em particular, se aquilo seria doloroso, com uma ponta de satisfação por ainda terem as próprias tripas devidamente resguardadas em suas barrigas.
Claro, seria eu o agraciado com essa dádiva. Tratei de abrir um guarda chuva dentro de mim, pois havia um temporal me inundando: gotas escapando pelos sulcos arados da testa, onde mais cedo havia plantado algumas sementes de ideias. Estaria estragada a plantação. Não haveria colheita no ano vindouro. Tudo estava encharcado por uma lama espessa, que descia ao olho trazendo um sal amargo que ardia na pupila: a água contornava a sobrancelha, inventando um leito.
Gritar a polícia! Pedir socorro! Apelar pela misericórdia divina! que adiantaria? Os crimes aspiram na lei, não na vontade de cometê-los: em breve ele me encontraria numa rua qualquer. E tudo se repetiria: vou te matar! O dedo imundo me deixando vesgo. O brilho de uma lâmina polida brilhando no canto do olho...
Sem mais nem por que, despediu-se de mim com umavisado.
Apenas em sonhos voltaríamos a nos ver.





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