sábado, 4 de maio de 2019

A palavra Saudade só existe na Língua Portuguesa



Desde sempre aprendemos na escola o quanto a língua portuguesa é linda, tendo a sua origem latina, que a opõe às línguas bárbaras; línguas essas muitas vezes escassas de vogais e desprovidas de acentos; aprendemos – meio a revelia – o quanto a Língua Portuguesa é bela, sobretudo quanto contrastada com as línguas de origem não romana, que nos são apresentadas como duras ao passarem pela garganta e mais duras ainda ao atingir os ouvidos (o que é uma bobagem de se dizer).

Claro, há uma regra ortográfica que nos diz que toda sílaba deve possuir uma vogal para existir, e toda palavra é composta por sílabas, logo... Mas é uma comparação boba e reducionista crer que nossa língua é bela por ter muitas vogais. Se formos fazer esse tipo de comparação, usando como recorte o tcheco, por exemplo, até que pode ser que essa impressão proceda. Alguns exemplos na língua tcheca para arranhar a garganta (e dar um nó na pronúncia):


Vlk: Lobo
Krk: Pescoço
Skrz: através
Krk: dedo
Ctvrt: quarto


Claro que dizer isso é uma bobagem absurda, e fazer essas comparações idem, pois há beleza em toda e qualquer língua, independendo o uso de vogais (e para isso ficar claro, seria necessário mais de um parágrafo sobre o relativismo cultural, mas não é esse o caminho que quero seguir nesse texto).

No entanto, não deixa de ser interessante de se pensar que herdemos um idioma belíssimo e o moldamos ao longo do tempo, mesclando-o ao substrato de línguas que já existiam por aqui e outras que arrastamos para cá (a ferro & fogo).

No entanto, não deixa de ser interessante de se pensar na beleza do nosso idioma nesse momento de muitos nacionalistas que amam não só a cultura estrangeira, mas se arrolam em bater no peito e defender o inglês (dos isteitis) como sinônimo de língua perfeita (é fácil, pois “tem uma estruturação gramatical mais simples” & “nem acento usa!”).

Aquele belo poema do Bilac, denominado – muita acertadamente – Língua Portuguesa, sempre mostra as caras nos livros didáticos, como um patrimônio (e o é): Última flor do Lácio, inculta e bela”, sendo a palavra “inculta”, às vezes, mal compreendida: inculta, por derivar do latim vulgar, aquele latim falado pelo povo; inculta, por se opor ao latim clássico, escrito, regido por regras gramaticais (ainda hoje, o termo “gramática normativa” e todo o seu peso, é o pavor de muitos; pavor meu, inclusive). Sobre o belo, não há nada a se dizer além do óbvio: é bela pela sua literatura, é bela pela sua poesia, é bela pela cultura que ela transporta (ou transborda), é bela, etc... etc... etc...

Nessa mesma toada, outro poeta, em outra época, também cantou a beleza desse idioma. Em “Língua”, Caetano Veloso canta: "Gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões” & “Minha pátria é minha língua” & “Flor do Lácio Sambódromo Lusamérica latim em pó". Coisa linda de se ouvir, com certeza absoluta.

Mas não é sobre a beleza da Língua Portuguesa e suas raízes latinas que eu quero falar. Não mesmo (até mesmo por que me falta lastro para tal, mesmo em um post despretensioso). Esse preâmbulo fica como isca para o que realmente me trás aqui, nesse textão de facebook: desde sempre aprendemos na escola que a palavra “saudade” é exclusividade de nosso idioma. Um dos nossos patrimônios, a palavra saudade, aprendemos na escola (meio a revelia).

Claro que dizer isso é uma bobagem absurda, pois não só o nosso idioma tem a sua gênese na língua dos romanos (imposta a ferro e fogo, diga-se de passagem), logo, as outras línguas neolatinas, por extensão, também tem uma Saudade para chamar de sua.

Por exemplo, em espanhol há a palavra Soledad, tal como há Soledat em Catalão; o Romeno, que também tem um pezinho no latim, tem um correspondente: a palavra durere. O mesmo ocorre com a palavra tesknota, em polonês (uma língua deveras bárbara).

Porém, como fica claro, em ambos os casos o sentido é um tanto diverso do que damos a nossa palavra Saudade. Para eles, essa palavra está ligada a uma ideia de “nostalgia de casa”, um termo para se dizer que se está com “vontade de voltar ao lar”. Há, um caso bem interessante com a língua de Goethe: fernweh significa sentir saudade de um lugar onde nunca esteve! Coisa que nossa língua não tem! Ou tem?

Outro caso interessante ocorre com o árabe, onde há uma correspondente bem próxima do sentido que damos a nossa palavra saudade. Mas nesse caso, não se trata de uma única palavra, mas do termo “alistiyáqu 'ilal watani”.

A palavra saudade vem do latim “solitate” (isolamento, solidão), esses casos apresentados também flertam com esse sentido. Nossa palavra saudade e as palavras solidão e isolamento – isso é bem claro – são muito diversas desse significado: nossa saudade pode ser sentida em meio a uma multidão, numa metrópole ou num camarote vip.

Nossa saudade, na maioria das vezes, é expressa como algo bom: um desejo de rever uma pessoa, uma vontade de reviver algo do passado (um beijo, uma viagem, uma ida ao restaurante); nossa saudade (a palavra) quase sempre é um pretexto para reencontrar um amigo que se distanciou, uma amada que foi abandonada (ou que nos abandonou), etc.

Creio que a originalidade da palavra saudade em língua portuguesa seja essa.


Um dia, pensando nessas questões (a beleza da Língua Portuguesa e a origem e originalidade da palavra saudade), resolvi escrever um poema sobre o tema.

Ei-lo:

___


Saudade, a palavra

1
Saudade não se traduz
Ninguém a sentia
senão os portugueses que a espalharam:
pastores, poetas, pulhas

(como a gripe, a varíola & o sarampo)

até o mundo todo ficar contaminado

2
Ninguém sentia saudade em russo?
O que corria nas cartas de Maiakovisk?
O que sentiu Gagarin ao ganhar o céu?
Qual era a cor dos olhos de Lênin no exílio?

3
Uma palavra inaugura tudo?
Inventá-la, ou traduzi-la
basta para (a palavra
ou o que ela transborda)
nos colonizar?

4
Tudo, dizem os filólogos
pelo fato de os lusitanos
errarem pelos mares
(nunca dantes)
deixando para trás as noivas
(por casar)
os filhos, o cachorro, o gato

– aliás
saudade é para quem fica
ou é algo que se reparte?

5
Mas e os outros povos, não erraram?
Gregos e Persas pelo Egeu
Fenícios nas praias da China
Vikings se bronzeando pela Linha do Equador
A Invencível Armada posta a pique
encharcando de sangue o Pacífico

Se não eram saudades o que deixavam
– no coração de suas amadas –
 o que seria então?

6


Quanto desse sal?

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