domingo, 23 de maio de 2010

Legenda para filme de Sergei Eisenstein

foto de Rafael Nolli



O poema tem que ser ácido,
não por mim,
mas por Sacco & Vanzetti –
sentados em cadeiras onde serão eletrocutados.

O poema tem que ser ferino,
não por mim,
mas pelo Líbano novamente bombardeado –
e que será bombardeado até que os telejornais
se cansem de noticiar a desgraça dessa guerra.

(Que o verso noticie as crianças confusas,
as bibliotecas cheias de poesia,
as mulheres agarradas às barbas de Maomé,
os cedros cantados pelo profeta Ezequiel –
todos excluídos das estatísticas,
pois suas mortes foram desprezadas
por não venderem jornais
e atrapalhar o comércio bélico.)

O poema tem que ver além do seu próprio umbigo,
não por mim,
que muito sei do meu umbigo,
mas por todos aqueles que amanhã
acordarão desesperados –
eu e meu umbigo entre eles.

O poema tem que ser denunciante,
não por mim,
mas por Ruanda
que na Noite dos Facões
perdeu um milhão de seus filhos
para uma fábula belga
sem príncipe encantado ou final feliz.

(Que no poema escorra o sangue dessa gente
que ainda ontem estava viva,
donas de suas mãos e
cabeças decepadas pelos vizinhos,
onde buscavam o sal
que faltava para colorir as suas mesas escassas.)

O poema tem que ser visionário,
não por mim,
que mal posso ver além das brumas do agora,
mas por todos aqueles que mesmo vendados continuam
sem dosar os passos no campo minado das cidades.

(Que o poeta saiba cantá-los
sem se esquecer dos
crimes diários que a sociedade obriga-os a cometer
[Bakunin sorri nessa estrofe!])

O poema tem que ser dos homens,
respirar o mesmo ar que eles,
chorar os mesmos mortos,
estar ombro a ombro nas filas dos hospitais
ou nas trincheiras do desemprego,

não por mim, poeta, não por mim.



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Mais poemas por aí:


* Estou na Revista Biografia do amigo Daufen Bach

* Novamente na bela Revista Letras Et Cetera

*

20 comentários:

Joakim Antonio disse...

O poema tem que ser o tudo e o nada, o visto e o não visto, a placa da estrada.

Tem que ser como aqui no teu poema.

Parabéns!

Isaias de Faria disse...

toda força do diretor. toda força do poeta. reli, e a cada leitura, fomam mais imagens revolucionarias dos filmes e do poema. vamos nessa meu caro rafael.

Isaias de Faria disse...

quatro mãos e cabeças pensantes. foi massa:

bergman vê faces e exprime com luz sua versão.
filma a dor a angústia e o medo
bem em closes.
mostra abismos a que podemos chegar e
o tempo é contado como
uma cáustica lembrança.

antonioni e jarmush podem deixar muita gente
querer sair da sala.
tem incomunicabilidade nossa lá.
trazem uma coexistência e inaceitação,
expressam lentas imagens que
nossa moderna rapidez não admite.

glauber restaura a brasilidade pura do povo.
eufórico, faz em pedaços o paradigma pensante.
cria espaços, deixa novo o cinema, bota a boca no mundo, e
denuncia a sórdida política e a massa manipulada.
é utópico (?) relutante e cheio de algoz vontade
de quebrar algemas rústicas imperialistas.

zé do caixão pavimenta caminhos sombrios,
com pouca argamassa nos leva ao inferno.
mostra a noite estranhamente escura,
um pouco mais densa que o sangue -
onde homens ou outra coisa,
se devoram esfomeados, até a alma.

einsenstein revela não só o homem
e a máquina que o oprime :
apresenta o povo e a notável ferramenta
que o liberta. a beleza no céu de outubro
incrivelmente vermelho
sobre os operários em greve.

kim ki-duk no arco das estações aponta
para uma ilha onde habita o insólito (animais selvagens),
onde a casa vazia tem endereço desconhecido & o
tempo não é nada samaritano,
onde sem fôlego acordamos de um sonho no meio de
um mosaico de imagens esdrúxulas.

béla tarr olha para a danação com vagar atípico,
as personagens solidificam na desgarrada solidão,
no p&b panorâmico caminha em silêncio,
enxergam suas monstruosidades no olho do ancestral,
irimiás discursa diante do corpo da menina suicida.
extemporâneo e harmônico tarr nos (des)concerta.

fassbinder e suas inúmeras querelas,
tanto desespero,
tanta violência, sexo...
rainer é incômodo, é visceral,
é um estrebuchar com a faca na barriga, um afronto,
furor e as iminentes lágrimas amargas.

alfred hitchcock nos desperta com seu suspense
carregado de tons claro-escuros
mesclando com diálogos manipuladores
onde o desfecho de um crime
é feito com arte, com sutileza
dando um novo sabor ao gênero.

alejandro gonzalez iñárritu nos conecta ao próximo.
inconsciente e independente do espaço
recria uma sensação dupla
de esperança e sofrimento.
sentimentos dos quais não estamos imunes,
compõem o ser.

walter salles resgata o afeto
perdido diante de um cotidiano
tenso, automático.
através de novas geografias,
novas visões e da difícil tarefa de
se colocar no lugar do outro

Assis de Mello disse...

Maravilha, Nolli !!!
Ótimo como todas as suas crias !!!
Chico

Fabrício Brandão disse...

Nolli, meu querido amigo,

Esta tua capacidade de deitar olhos lúcidos ao poema torna você um autor especial. Digo isso porque poucos, mas muito poucos mesmo, sabem ser críticos de nossos tempos deixando o panfletário de lado.

Abraços poéticos!

Rubo Medina disse...

... ou seja: o poema tem que ser forte, vigoroso, capaz de ulteapassar o invisível do invisível.... Excelente, Rafael.
Foi bom estar aqui novamente.
Abraços e sucesso pra você.

jorge vicente disse...

tu és de facto UM ENORME POETA!

não digo grande, mas enorme!

Parabéns, amigo!

Um abração!
Jorge

Daufen Bach disse...

Meu caro Nolli,

algumas coisas depejam na gente um certo desejo catártico de compor desesperadamente. esse teu poema tem dessas coisas... és um dos grandes meu caro!

abraço forte a ti.

daufen bach.

Cássio Amaral disse...

Muito bom Nolli!

Eliane F.C.Lima disse...

Rafael,
A poesia alcança mundos e se metamorfoseia em mil formas diferentes. A sua é uma boca que fala por aqueles que não têm voz.
Eliane F.C.Lima (http://poemavida.blogspot.com)

Gustavo Reis disse...

Oh ex-professor, como vai adorei seu blog naum sabia que escrevia num blog

abraços.
to te seguindo rsrs

~*Rebeca*~ disse...

Adorei!

JPM disse...

Olá,
Tive contato com o teu blog no da Manufatura.
Agora vim conhecê-lo e seguí-lo.
Desde já és convidado a visitar o meu.
Saúde e felicidade.
João Pedro Metz

Luiz Alberto Machado disse...

Maravilha este seu espaço. Parabens. Indicarei nas minhas páginas, aguarde.
Abração
www.luizalbertomachado.com.br

Caim disse...

De fato não é uma fabrica mesmo! Lembra?
Estes versos foram talhados, lapidados e polidos e nele deve ter ate um pouco do cuspi para lustrar e dar brilho.
Continue assim Nolli, não por vc, claro!
Abraço!

livia disse...

ol´,Nolli.Fort e lúcido poema.Nao devemos perder a lucidez e tornar a enxergar,como dzia Saramago.Diante desse mundo louco(sempre louco)cotnumos cegos...Mas,diante da dor,deseperos devemos manter a esperança d refazer o mundo ou...enlouquecemos de vez.O mundo está muto tolo,preguça mental(querem tudo mastigado como saido de uma máquina de fazer café(ponto).Alinaçao de uma alegia vazia é o carnaval dos estúpidos.Ser feliz nao significa esqucer que o mundo fabrica infelicidade e infelizes.Os muros sociais s erguem assim como os politicos,raciais...Caminhos par frente?se tanto,sbemos que a caminhada é dificil.Se abrirmos a mente ja teremos dado um passo gigantesco para a nosa emancipaçao de seres...Mas,marcamos o passo nas cópias de tudo que nos dão como felicidade de shopping.A desgarça baterá a nossa porta,com certeza!Abraço,poeta.

Francisco Coimbra disse...

Um poema cheio de energia,muito bem perspectivado! Parabéns

Alis disse...

..." o poema tem de ser dos homens...."

sempre o b e l o de sent !r...

obrigada...

beijinhos

ANGELICA LINS disse...

Um poema tem que ter a força da alma e o seu tem.

Abraços!

Anônimo disse...

simplesmente demais os versos, Rafael, me identifico demais.