pardal - foto rafael nolli
Quando  os gatos  se acabam debaixo  da roda  dos carros ,
ou  se matam na boca  de cães  domésticos 
– !equilibristas insanos  de muros  de quintais ! –
eu  me  nego  a dormir  em  paz .
Não  por  amá-los,
pois  desde  sempre  os odiei
com  seus  roucos  miados  boêmios :
insuportável  ruído  noturno  perante  o canto  dos grilos 
      e dos galos ,
diante  do pio  das corujas 
            e o alarme  dos carros  arrombados.
Não  por  compadecer  de sua  extinção . 
Lamento , antes , o som  de grandes  vira-latas 
feito  saco  de ossos  e merda espalhados no asfalto 
(quando  se pode somar  à suas  tripas  e pêlos 
uma boa dose  de urina  ou  ódio  
                              e nada  alterar  em  sua  desgraça ).
Quando  os gatos  aniquilam-se
em  pedaços  de carne  envenenada,
jogadas  por  sobre  o muro  ou  deixadas na sarjeta ,
eu  me  sinto diferente  de quando 
as últimas aves  se desfazem nos  pára-brisas  dos ônibus ,
ou  de quando  o gado  confinado
se esquece de sua  natureza 
e pensa  a si  mesmo  como  mais  um  dos postes  da cerca .
Não  por  prezar-me da sina  dos gatos ,
pois  antes  de tudo  amaldiçôo-os categoricamente –
esquecido do bom  senso , dos modos  ou  da etiqueta .
Não  por  indignar-me de restar  a eles,
e a sua  classe, a corda-bamba dos muros :
por  ideologia  sempre  acreditei ser  o mundo  dos homens 
e de seus  fantasmas ,
dividido em  partes  iguais  aos primeiros  citados.
Quando  os gatos  são  substituídos por  seres  genéricos ,
animais  exóticos  ou  bichinhos de pelúcia ,
que  não  trazem mentira , asma  ou  alergia  ao lar ,
eu  me  nego  a dormir  em  paz .
Não  por  estar  a par  dos últimos  avanços  da medicina ,
das técnicas  homeopáticas, dos tratamentos  alternativos ,
das UTIs e do xamanismo em  última  instância ,
mas  por  saber  o restante intratável .  
Na noite  em  que  os gatos  são  subjugados pelas ratazanas 
e seus  corpos  devorados em  belos  ensopados ,
ou  servidos em  noites  de gala  em  espetinhos  de bambu ,
nas noites  em  que  crianças  amarram bombinhas em  seus  rabos ,
ou  os lança  aos fios  de alta  tensão  para  ver  os fogos ,
eu  me  nego  a dormir  em  paz ...
Porém , eu  durmo.
*

24 comentários:
eu, impiedoso felino ou pobre ave?
ambos, creio!
.
gostei muito, Nolli!
.
beijo!
mano,
ao ler seu poema lembrei do pixel, o cachorrinho do ricardo wagner.
velho, nosso cão, o stubbe comeu veneno, ficou intoxicado e ficou 5 noites uivando, não dormimos direito nesse período.
fotografia é uma linguagem da arte que muito me interessa hoje. e suas fotos são muito bacanas meu caramada.
saudade sua.
abração.
Também gostei muito, o final fechou com chave de ouro.
Muito lindo,denso profundo.
negar dormir em paz faz parte da personalidade de poetas. mas...
O espanto e a arte, uma união idissolúvel.
Aqui, junto à tua arte, está o meu espanto, amigo Nolli.
Um beijo
da Sonia
um dos seus grandes poemas, amigo, sempre!
apesar de não gostar de gatos hehehhe
grande abraço!
jorge
A crueldade tira o sono e inferniza a paz.
Você escreve com uma vontade cheia de força. Densidade pura.
Espero não perder contato, Rafael.
Maravilhoso começo de semana.
Rebeca
-
durma-se com um barulho desses.
poesia cr´tica sempre me apraz
Olá Rafael, tava com saudade dos seus textos. Pra ser sincero não tenho lido poesia nos últimos dias, aliás, ainda lendo Orides Fontela. Já viu alguma coisa a respeito? Bom, não gosto de ser indelicado e acho que nem tem necessidade, mas eu não gostei deste texto não – espero que isso não seja encarado como indelicadeza! -, o achei bastante adolescente, pois você tem coisas vislumbrantes. Não gostei porque você tem um mote e tanto, mas o deixa no óbvio, revoltazinha juvenil, você é maduro agora!!!!! Acho que você vence ao falar do “gado que se esquece no poste” – isso é coisa de Nietsche em Segundas Considerações Intempestivas, a metáfora que você começa a fazer, embora não conclua, é o ápice no seu texto. Veja bem, “...o rebanho que passa ao teu lado pastando: ele não sabe o que é ontem e o que é hoje; ele saltita de lá para cá, come, descansa, digere, saltita de novo; e assim de manhã até a noite, dia após dia; ligado de maneira fugaz com seu prazer e desprazer à própria estaca do instante, e, por isto, nem melancólico nem enfadado...” (NIETZSCHE, 2003: 7). É claro que alguém vai brigar comigo e defender o direito da poesia existir por ela mesma, sem a pretensão do sentir filosófico, mas acho que você não corrobora com essa desculpa, não é mesmo?! Até porque pra mim, se não houver isso não há arte que valha à pena. No mais, Rafael, eu concordo com você e repito Goethe, que diz ser o nosso tempo tão ruim, que o poeta não encontra na vida humana à sua volta nenhuma natureza utilizável. No mais eu fico aqui espiando seus escritos e esperando encontrá-lo mais fugaz.... rsrsrs. Abração, amigo!
Que isso, Túlio, não há indelicadeza alguma! Seria bom se todos que não gostaram dessem o seu parecer. Uma obra só se constrói se houver debate, crítica. Sem a crítica não há de se chegar a lugar algum que se preste. Esse sistema de blogs - e sua base firmada no elogio - acaba deixando o poeta numa área de conforto. O que é um incômodo! A crítica, séria e responsável, tira o poeta desse conforto e impede que ele caia no verso fácil, raso e descomprometido (eu morro de medo disso!). Tenho consciência que muito do que faço não vale grande coisa, mas estou tão mergulhado nesse mar que preciso de muito tempo para perceber o tamanho do atoleiro. Quando surge um comentário contrário as coisas ficam mais claras. Esse poema, em questão, eu gosto, não sei até quando gostarei. Gosto por que conheço o meu limite e minha forma de criar e sei que dificilmente iria além de onde fui. Assim, compreendo até certo ponto as minhas limitações e tento diariamente superá-las, o que nem sempre – ou quase nunca – eu consigo. ”Fica assim, o melhor de mim - hoje. Dito isso, agradeço e peço que sempre que houver discordância não deixe de se expressar – sei que você o fará, por isso eu só tenho a agradecer! Abraços!
Ah, sobre a Orides só posso dizer que gosto muito - ia sempre na biblioteca pública para lê-la.
Um, dentre tantos que gosto:
Errância.
Só porque
erro
encontro
o que não se
procura
só porque
erro
invento
o labirinto
a busca
a coisa
a causa da
procura
só porque
erro
acerto: me
construo.
Margem de
erro: margem
de liberdade.
Orides Fontela
Muito legal =)
Fico feliz de ser rodeada de amigos POETAS
Gatos
Hoje, ele apareceu. Com seus olhos verdes que atingem as esmeraldas de minha alma,
ronronou, acariciou... Na orelha esquerda faltava um chumaço de pelo e um pedaço da carne .
- Andou amando, pensei. Eles amam assim, de um jeito embrutecido; uma negação ao aconchego em salvamento da liberdade. Parecem com os humanos em suas metafóricas lutas internas. Com a diferença de que no retorno nada dizem, apenas atingem minhas esmeraldas com o verde felino de seus olhos.
Nolli
Sábias palavras meu amigo,
temos que escrever mais e mais.
Amei!!!!!
Gosto muito da tua poesia.
abrs.
Nolli,
Já falei da explosão que vejo em seus textos. E esse jogo em que, aparentemente fechando vias - negativas e foice na mão -, você força atalhos. E são sempre de mato fechado, capim cortante. A gente não chega ao final sem se surpreender com o sangue escorrendo na testa, pelos braços: "Onde foi que eu me cortei?"
Eliane F.C.Lima
Barulhos, escuros e gatos?
Como se fosse verdade...
Durma em paz!
Nolli, um poema que incomoda por expressar de forma irreversível esse mundo de iniquidades. Tenho dois gatos e cada vez que os olho me sinto de alguma maneira privilegiada por compartilhar seus gestos, seus mundos, sua elegância e esquisitices.
`As vezes não consigo dormir quando penso nessas coisas. Às vezes, consigo.
Gostei muito, muito. E o comentário do Túlio e sua resposta enriqueceram ainda mais esse espaço. Beijo
Olá, amigo, boa noite!
Venho simplesmente desejar-lhe,
e aos seu familiares, uma óptima
Quadra Natalícia!
Saudações poéticas
Sei lá se entendi..., sei lá se é pra 'entender' alguma coisa...
Pra mim vc declarou uma ojeriza aos gatos, praticamente detonou-os; mas, de uma maneira muito interessante e criativa; além de pessoal, é claro.
Abrçs.
Estranho ler um poema que combina com a sensação da escrita que adormece nas folhas em que eu me permite assinalar. Até mesmo o desfecho fez juz a sensação do personagem que se precipita em receios e indagações, recusando-se a um rendição necessária. Ainda estou trabalhando nisso, mas seu poema serviu de alento aos meus olhos.
Acabei lendo sua linhas até o findar da página e fiquei intrigada com a diferença que surge ao longo da mesma. Parece uma espécie de amadurecimento ao contrário, já que os posts são em sua maioria por ordem recente. Acho melhor eu ler novamente num outro momento. rs
Bacio
OI Rafael,
apesar da "adolescência" vista pelo Túlio, eu gostei do poema, gosto desses gritos. Como diria Bataille, tudo o que nos resta é a revolta :)
credo!
bjbj
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