tela de Lorenzo Mattotti
Neruda voltou a ser o meu grande poeta. Não sei por que, mas vinha me afastando dele ultimamente, enquanto pensava comigo o quanto nos falta – para a nossa poesia – mais reverências a esse poeta. Isso é algo que me marca nesse ano, que foi, possivelmente, o ano que menos li em minha vida. Creio que o trabalho tenha me impedido de certos prazeres; logo o trabalho que é exatamente o que eu queria para mim. São coisas da vida. Ainda assim foi o ano em que li A Revolução dos Bichos, livrinho de meia dúzia de páginas que me marcaram como um coice, além de um certo Morravagin, de Blase Cendrars, que me impressionou bastante. Apenas uma releitura me permiti: Humano, Demasiado, Humano – o tio Nit continua entre as minhas prioridades.
Passando parte desse ano a limpo me vem à memória uma espécie de embrutecimento – deve ser a idade, ou algumas pedradas que caíram do céu. Não me lembro de ter chorado em cima da página de nenhum livro, derramada nenhuma lágrima sobre um poema – ainda que William Carlos Willians tenha me tirado o sono por um bom tempo; sequer de algum filme me recordo com olhos marejados: e foi um ano de bons filmes, dentre eles um Fellini visceral e um apaixonante Je vous salue Marie. Espécie rara, com certeza, esse embrutecimento.
Ainda nesse terreno, por vezes lodoso, outro número me assusta: escrevi, no máximo, uns cinco poemas. Disso eu não pretendo reclamar, porque venho planejando a muito condensar a minha obra, escrevendo só mesmo quando for inevitável. A blogosfera trouxe a liberdade de publicação e paralelamente disseminou uma cultura de leitura imediata e descartável. Isso nunca fez a minha cabeça – não acredito no poema eterno, romântico, que sobreviverá a morte do corpo físico do poeta e atravessará os séculos arrancando suspiros de donzelas, no entanto estamos vivendo um tempo de consumo imediatista em que o poema só vale enquanto é lido. Pior que isso só mesmo uma febre tifóide.
Escrever um verso semanalmente, religiosamente, nunca me pareceu exercício de grandes resultados. Com cinco poemas fecho o ano com um balanço positivo – ao menos são cinco poemas que me agradam, que sei que foram colhidos nas pessoas e não nos livros. Não que eu tenha algo contra o conhecimento livresco, mas reforço a minha visão de que poesia é um instrumento de transformação social, e não um bicho de laboratório, produto sintético, sem sangue e suor, que vive no dicionário esperando que venha um vulto sagrado para ordená-las magicamente. Buscar a qualidade e não a quantidade é uma meta que pretendo continuar seguindo, ainda que para isso tenha que deletar um poema por mês, ou abortá-lo semanalmente. E o povo, na rua, que passa por mim, trás consigo uma poesia inexplicável, pedindo para ser escrita.
Esse que seria o ano do Chico acabou me surpreendendo. Chico foi o que mais tocou na minha vitrola – sim, eu tenho uma vitrola – mas tive a minha fé renovada na guitarra elétrica. Culpa de uma epifania ao ouvir certa música do Sabbath, mais exatamente a grandiosa & wagneriana “Lonely is the Word”. No plano das realizações, seria o ano em que voltaria a tocar bateria e provavelmente montaria uma banda, deixaria a barba crescer e incomodaria os vizinhos com violentos golpes nos tambores. Nada disso ocorreu e nada mais me resta falar sobre esse assunto.
Duas estruturas não se abalaram em mim. E saio mais forte e confiante em minhas posturas ideológicas. Ateu, sim. Por mais que Isaías tenha me tocado com sua poesia, prossigo totalmente descrente e feliz com essa condição, ainda que tenha sido um período em que fui muito cobrado por isso. Comunista. E lamento por aqueles que não o sejam – o que poria as coisas em seu eixo mais rápido. Isso basta e diz tudo, o resto pode ser observado em meu livro Memórias à Beira de um Estopim. O lobo e o cordeiro comerão em um mesmo pasto, mas quem tornará isso possível será o próprio homem, esse ser pequeno e falível e não uma força invisível, infalível, abstrata. E terá, com certeza, gosto de aurora.
No campo do amor, continuo serenamente apaixonado, completando cinco anos de namoro, mergulhado em um relacionamento estável, construído em um solo seguro. Sem grandes discussões ou problemas de qualquer ordem, pretendo que assim se estenda pelo ano vindouro.
Esse foi o ano em que me formei. O pior dos três anos de curso. O que salva são os amigos que fiz, infelizmente distantes, a maioria em suas cidades natais. Foi o ano decisivo para fortalecer laços de amizade e para desmanchar aqueles que o nó já vinha se afrouxando. Fica uma saudade do clima e, sobretudo, das pessoas; a escola é o meu ambiente, é nele que me saio melhor e é dele que venho tirando o meu sustento, já que a poesia não vende, e o poeta valha menos que um zibazol. Apenas uma grande mágoa guardo da faculdade, mas sou prodígio em curar essas feridas – um pouco de tempo, merthiolate e Band Aid me bastam.
Por vezes foi um ano estúpido, ignorante. O predomínio da intolerância me tirou o apetite muitas vezes – um pouco de Voltaire, ou de humanidade faltou para os porcos que estão no comando. Diante da TV ou navegando pela Net me vi enfurecido com a estupidez dessa guerra no Iraque, sem propósito, essa matança que não respeita nenhum código, que vem marchando sobre o povo indiscriminadamente, apenas para alimentar uma república às portas da falência – a economia baseada na indústria bélica deve encontrar o seu fim, ou em breve o mundo será consumido por esse ódio. Temo muito que o ano de 2009 seja o ano em que veremos o maior dos massacres desse imberbe século – Israel com suas costas quentes invadindo a faixa de Gaza por terra, com o seu arsenal, seus tanques. Isso me causa arrepios. Espero sinceramente não ver isso.
Veremos o que será desse 2009 que começa com uma crise econômica que se arrasta pela Europa e pelos EUA e que pode estender os seus tentáculos sobre o nosso continente, que vem se transformando muito rapidamente, em diversos pontos para melhor – temos democracias em processo de solidificação, lideradas por presidentes atentos com os problemas sociais, em especial o caso da Venezuela e da Bolívia. Não nego que existam alguns erros, algumas falhas, isso é certo, mas ainda assim são os melhores que já chegaram lá: estendo essa visão ao Brasil.
Para finalizar, um sinal me parece muito bom. Esse ano se inicia com o aniversário de 50 anos da Revolução Cubana, um grande motivo para celebrar.
Uma abraço a todos e feliz 2009.
*
10 comentários:
Ótima reflexão. Foi bom te ler. Os meus começo de ano são sempre uma mistura de angustia e esperança, embalados de euforia mal canalizada. Se ao menos as palavras não me abandonassem quando gostaria de expressar tal situação. É bom te ler. Um abraço e um ano genial para todos nós.
seu ano foi muito melhor que o meu. às vezes acho que 2008 é que passou por mim, e não eu por ele.
espero que eu pegue 2009 pelo chufre, como você fez com 2008.
;)
Olá Rafael, obrigado pelas palavras lá no Escrevinhamentos. A situação nos obriga a tomar partido: o partido da verdade. Abraço.
UFA, vc se formou...e acha que fez pouco nesse ano? Quiçá 2009...espero um grande ano pra vc (de novo!)
Feliz 2009, querido pensador!
Salve Neruda!
:)
Que reflexão!!!
Que Seja bem Vindo 2009!
Ótimo post e escrita! Parabéns! Abração!
Uma vez mais gostei de o ler.
E já agora, a propósito de Pablo, veio-me à memória um poema de um poeta moçambicano que muito prezo -
HELIODORO BAPTISTA - dele, que eu tenha conhecimento, em Portugal, só de editou um livro " Nos joelhos do Silêncio", com prefácio de Mia Couto (ou não fosse o Mia Couto a abrir a porta)
Não é desse livro o seguinte poema:
Variações Onomásticas
ao meu filho Pablo
Há o Casals
que recriou Bach
com algumas alternativas
de mestre.
Era burguês, claro!
De onde a origem refinada
que manejava a batuta
ou mesmo
o acorde supersónico
mas pleonástico
- sósia nos prelúdios –
das suas reivindicações
com a Sinfónica de Londres?
Depois há o Picasso
esse mesmo, o de Guernica
que a ampolas de soro
( ou de ternura da boina basca?)
aguentou-se no exílio
e num crepúsculo transfigurado
pôs a hábil dextra
sobre a pomba branca
que é a pulsação exacta
( ou finito istmo)
dum grito humano.
Evidente: também era burguês
embora com uma clavícula
( seria a esquerda?)
algo progressista.
Mau grado a luxúria das suas cores
é possível reeducá-lo
mesmo depois de enterrado.
Temos ainda o inusitado cantor-ambulante
que amou nos Andes
o rosto da poesia nas mulheres
e só se entregou
quando fê-la património
de todos os homens.
Onde a dúvida?
Mais do que burguês
este conservador do verso amoroso
este imperialista do amor universal
este raccionário das odes angustiadas
este concupiscente diplomata do vocábulo
aceitou os tacos do Nobel
tinha a mania das boas bibliotecas individuais
casou-se algumas vezes
e ainda por cima
copulava nu e sem relógio.
( Mas em confidência vos garanto:
um polícia quase bacharel em Direito
grande admirador do Goebbels
na ciência da propaganda infalível
e mais-ou-menos da marimba
se pudesse ouvi-la num “ Pionneer”
intervencionado
preveniu-me noutro dia
para eu ter cuidado
e deixar-me de influências:
No mínimo
“ Confesso que vivi”
era a prova derradeira
que institui a difluência
ou, pelo menos,
a arduidade dos poetas
teimando na sua polifonia
e a propagar que cada homem
é um mundo uma estrutura
uma casa à beira-mar)
E tu, meu filho,
que carregas esse nome diabólico
por que dizes já com 2 anos
a mim de cenho mortuário
que assim, assim mesmo,
“ estás farto desta merda”?
Ah pois. A merda sou eu.
Nunca a poesia. A poesia do sr polícia.
Mas se um dia
encontrares este bacharel por pouco
diz-lhe que o pai deve estar
decantado entre “ Mogadan” e a “ Ode ao pão”
e, a propósito de comida,
há sempre em nossa casa
um prato para o amigo.
Que ele desculpe
mas não temos hors d ‘ouevres.
Isso não é em Paris ou Londres
quando fez de James Bond dos nossos?
Prometo que te conto
algumas muito boas
do burguês La Fonataine
e, para começar
aquela giríssima
do lobo e do cordeiro.
Heliodoro Baptista ( n. 1994, Moçambique)
(In Por cima de toda a folha)
Ainda não tinha lido. Gostei muitíssimo. Abraços!
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