sábado, 30 de janeiro de 2010

Vis naturalis


Em nada me afugentarei da sanidade

se um dia amanhecermos no coração

de uma hecatombe;


se um dia as nuvens se misturarem

ao cogumelo atômico e retirar dele o ácido que

nos pulverizará como gafanhotos;


em nada abalarei meu passo

por entre as fotografias espantadas,

cravadas nas paredes

atestando o gesto inútil

dos braços levando as mãos à boca:

flash letal eternizando num álbum urbano em retalhos

a silhueta do pavor e do desespero;


em nada diluirei meu olhar

por entre a alma da cidade esvaindo pelos bueiros:

miasma insuportável atraindo os repórteres

os partidários e os urubus.


Em nada me lamentarei

se um dia acordarmos no meio da noite

e pela janela não vermos nada

além do sonho humano configurado em :


ó doce momento, te aguardo em silêncio,

pois o vislumbrei em sonhos recentes!

Te aguardo, minha insônia atesta!


Eu vi

a poeira radioativa

trazida com a brisa mais fresca da manhã:

ouvi a tosse das crianças a caminho da escola,

surpreendidas por uma coriza escarlate

que lhes manchava o uniforme impecável

a vida mesmo escorrendo até a boca infantil:

ranho que eles sorviam com a língua, em vão.


Eu vi

um rastro de lancheiras esquecidas

sendo esmagadas por paquidérmicos tanques,

devorando o trilho sinalizador da volta ao lar.


Eu vi

mãe e pai mortos no ato do beijo mecânico:

contato labial sabor margarina e desgraça

despedida derradeira

apagada da história humana

num longo segundo envenenado.


Te aguardo em silêncio, ó doce momento:

pois em meu sonho eu vi um menino

te reverter com um gesto mínimo,

pois teu barulho lhe atrapalhava a brincadeira.



______________________________________

* do livro Comerciais de Metralhadora

* poema originalmente publicado na Revista Germina:

http://www.germinaliteratura.com.br/l_rafael_nolli.htm

8 comentários:

Adriana Godoy disse...

Poema magnífico e hecatômbico. Uma guerra insana e uma brincadeira de menino. Bravo, Nolli. Beijo.

Vera Basile disse...

Maravilhos Nolli! E grande final, colocando as mãos de uma criança!
Abraço e obrigada pela visita!!

Eliane F.C.Lima disse...

Rafael,
Digno de Salvador Dalí em suas imagens surrealistas... não fosse a crueza de sua realidade. O mundo está ficando cada vez mais surrealista e o pintor cada vez menos surreal. Um dia chegaremos à anulação completa daquelas imagens minimizadas em seu delírio.
Eliane F.C.Lima (Poema vivo)

Cássio Amaral disse...

Nolli,

Muito bom poema! Imagens fortes e bem construídas. Grande abraço.

Isaias de Faria disse...

rafael,tem sua verve nesse poema.
gosto muito. abraço

_Maga disse...

Esse poema está ótimo... muito você. Valeu a pena esperar. Um abraço

Márcia(clarinha) disse...

Cruel realidade numa doce insanidade de versos e anseios, perfeito! A loucura fica leve...
Pois é, faz tempo que não nos visitamos, mas tudo bem, cada um fazendo malabarismos com seu tempo, aff! implacável ;-)
beijos de lindos dias

livia disse...

ola rafael.Este poema de contraste é lindo pela força do claro e escuro que se coloca.O mundo adulto e do menino e este menino quando virar adulto como será?já que o mundo tem estas marcas do desenho masculino.Bom para refletir muito.abraço.