Em nada me afugentarei da sanidade 
  se um dia amanhecermos no coração
              de uma hecatombe;
   
  
se um dia as nuvens se misturarem
  ao cogumelo atômico e retirar dele o ácido que
              nos pulverizará como gafanhotos;
   
  
em nada abalarei meu passo
  por entre as fotografias espantadas,
  cravadas nas paredes –
  atestando o gesto inútil 
              dos braços levando as mãos à boca:
   
  flash letal eternizando num álbum urbano em retalhos
        a silhueta do pavor e do desespero;
   
  
em nada diluirei meu olhar
  por entre a alma da cidade esvaindo pelos bueiros: 
  miasma insuportável atraindo os repórteres
              os partidários e os urubus. 
   
  
Em nada me lamentarei
  se um dia acordarmos no meio da noite
  e pela janela não vermos nada
  além do sonho humano configurado em pó:
   
  
ó doce momento, te aguardo em silêncio,
  pois o vislumbrei em sonhos recentes!
  Te aguardo, minha insônia atesta!
   
  
Eu vi
  a poeira radioativa
  trazida com a brisa mais fresca da manhã:
  ouvi a tosse das crianças a caminho da escola,
  surpreendidas por uma coriza escarlate
  que lhes manchava o uniforme impecável –
  a vida mesmo escorrendo até a boca infantil:
              ranho que eles sorviam com a língua, em vão.  
   
  
Eu vi
  um rastro de lancheiras esquecidas
  sendo esmagadas por paquidérmicos tanques,
  devorando o trilho sinalizador da volta ao lar. 
   
  
Eu vi
  mãe e pai mortos no ato do beijo mecânico: 
  contato labial sabor margarina e desgraça –
  despedida derradeira
  apagada da história humana
              num longo segundo envenenado.
   
  
Te aguardo em silêncio, ó doce momento: 
  pois em meu sonho eu vi um menino 
  te reverter com um gesto mínimo,
  pois teu barulho lhe atrapalhava a brincadeira.
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* do livro Comerciais de Metralhadora
* poema originalmente publicado na Revista Germina:
http://www.germinaliteratura.com.br/l_rafael_nolli.htm
 
8 comentários:
Poema magnífico e hecatômbico. Uma guerra insana e uma brincadeira de menino. Bravo, Nolli. Beijo.
Maravilhos Nolli! E grande final, colocando as mãos de uma criança!
Abraço e obrigada pela visita!!
Rafael,
Digno de Salvador Dalí em suas imagens surrealistas... não fosse a crueza de sua realidade. O mundo está ficando cada vez mais surrealista e o pintor cada vez menos surreal. Um dia chegaremos à anulação completa daquelas imagens minimizadas em seu delírio.
Eliane F.C.Lima (Poema vivo)
Nolli,
Muito bom poema! Imagens fortes e bem construídas. Grande abraço.
rafael,tem sua verve nesse poema.
gosto muito. abraço
Esse poema está ótimo... muito você. Valeu a pena esperar. Um abraço
Cruel realidade numa doce insanidade de versos e anseios, perfeito! A loucura fica leve...
Pois é, faz tempo que não nos visitamos, mas tudo bem, cada um fazendo malabarismos com seu tempo, aff! implacável ;-)
beijos de lindos dias
ola rafael.Este poema de contraste é lindo pela força do claro e escuro que se coloca.O mundo adulto e do menino e este menino quando virar adulto como será?já que o mundo tem estas marcas do desenho masculino.Bom para refletir muito.abraço.
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