segunda-feira, 24 de julho de 2017

Corpo



(poema sobre uma notícia real)

1
Quando arrombaram a porta – com um solavanco e um pé de cabra – os enlatados já estavam com a data de validade vencida em dez anos, pelo menos.

Alguns objetos da cena – tv de tubo, telefone fixo, vitrola, vídeocassete – já não se fabricavam mais: foram eliminados ou sofreram saltos evolutivos: pouco lembravam aqueles sáurios.

Quando entraram na sala, um presente de Natal – de dez anos atrás! – aguardava para ser aberto (ou enviado) e não seria jamais: tudo fora adiado para sempre naquela casa.

2
O corpo da mulher estava lá
quando arrombaram a porta:

em meio à mobília
diante da tv desligada
a dez anos, pelo menos:

nenhum telefonema
nem uma única visita

O corpo em meio à mobília
esquecida por uma década:
dezenas de aniversários
ceias
bodas
reuniões do condomínio (centenas delas!)
bailes do Clube dos Aposentados
todos passaram em branco

Ninguém para reclamá-la
nenhum vizinho ou amante
que tenha dado por sua falta

Sobre a cômoda, coberta de pó
a caderneta de endereços
abarrotada de nomes

3
Nenhum inimigo fiel & impiedoso para cobrar uma dívida, para esclarecer velha rixa – para perdoar uma rusga do passado,          

ou um passante, incomodado com o mal cheiro, ou um voyeur acampado no edifício em frente, ou um ladrão sorrateiro. Ou um dos filhos.

Quando arrombaram a porta e entraram na casa, viram o corpo de dez anos atrás, esquecido como um animal no meio da mais obscura floresta, largado na mais completa solidão

(lá fora, a cidade fervilhante).

4
Quanto tempo terá resistido o cão
– desesperado & faminto –
após a morte da dona?



2 comentários:

Thales Rafael disse...

Tem que ter um olhar muito aguçado pra abrir o jornal, ver a notícia e enxergar o poema. Que trabalho, meu amigo! Dá a sensação de estar no quarto, observando o corpo decompor, o ar pesar e estar de mãos atadas assistindo ao tempo cumprir sua tarefa. Não sei se é isso, mas lendo teu escrito fiquei com a sensação de que somos todos aquela árvore que cai na floresta e não é ouvida por ninguém. Talvez a gente só morra quando alguém constate o óbito. Até lá, morrer é o que você capturou: a mobília, as dívidas que ninguém reclama, o cachorro que a gente não sabe se sobrevive. Você é um ótimo contador de histórias.

L. Rafael Nolli disse...

Thales, muito obrigado pela visita e pela leitura! Gostei muito da sua observação! É exatamente isso! Volte sempre!