quinta-feira, 17 de outubro de 2019

Curta-metragem


Ninguém na sala branca, apenas cadeira e mesa. A lâmpada acesa ilumina ninguém: patético brilho perdido por sobre as coisas frias e inanimadas. A fumaça de um cigarro deveria ser bafejada no cone que orna a lâmpada, para magicamente tornar o ambiente pesado, antes do “OK, gravando”.


O close retiraria dos olhos do ator o sumo da dor que ele deveria fingir sentir, sentado na cadeira que está amputada de seu complemento humano.

O script dava conta de um suspiro que moveria a fumaça como um soco, e salientava que haveria de ser um som não compreensível, ainda que sugerisse um nome de mulher.

Ninguém na cadeira. Ninguém na sala. A câmera – se estivesse ligada – captaria apenas mesa, cadeira e lâmpada. O ator, nesse exato instante, se tudo estivesse dentro do horário previsto, esmagaria o cigarro no cinzeiro com a fúria. Um close ampliaria o simbolismo mostrando o dedo (do torturador) subjugando uma coisa mínima e frágil. Depois, choraria. Quase em segredo, choraria (outro close faria mais uma vez o serviço).

Anotações no canto da página do roteiro davam conta de dicas para melhor ilustrar a cena. A lápis (canto superior esquerdo) se lê: “lágrimas que se sucedem quase que metodicamente, entrecortadas violentamente pelos fios duros da barba que brotava na cara, como espinhos”. Por aqui haveria um corte. A queda da lágrima deveria ser acompanhada pela câmera, até que o chão a recebesse como a um suicida do décimo quinto andar. Outro corte.

Voltamos – página dez – aos olhos ainda secos. A câmera observa um deles (o olho do torturador) de tal forma que o torna um espelho por onde reflete uma figura que adentra pela única porta – o torturado seria introduzido assim na sala (o reflexo nos olhos secos do torturador). Havia um quê de poesia nessas linhas do scripit, que evocavam belezas sublimes sobre como as unhas arrancadas eram maleáveis (mas isso jpa se encontra no final da página 13, início da página 14): metáforas poderosas estão encravadas aqui, página 13, por exemplo: “a sua voz entortava de tal forma que lembrava o canto de uma fera descontrolada”: a voz faz perguntas absurdas, exige a confissão.

A câmera deveria enfurecer-se, postar-se nervosa, como se a tortura ocorresse em seu interior eletrônico, e não no homem que deveria estar sentado na cadeira, iluminado por uma lâmpada fria, coberta de fumaça.

O cinegrafista deveria sentir nos próprios calcanhares os choques elétricos que eram falsamente aplicados nos calcanhares do homem amarrado, que se não fosse o atraso para iniciar as filmagens, estaria sentado na cadeira, retorcendo o corpo como um porco esfaqueado.

Se tudo estivesse ocorrendo como o combinado, e o atraso não fosse uma realidade para as filmagens terem se iniciado, o diretor haveria de interferir no ocorrido, perguntar se alguém havia presenciado uma degola de frango. Dizer que na infância vira uma pobre galinha correr sem cabeça por um minuto inteiro, o corpo sacolejado por estranhos espasmos que não eram enviados pelo cérebro; descreveria como certa vez viu a máquina (o corpo da galinha) lentamente se desfalecendo, pena a pena se eriçando. Empolgado, o diretor haveria de dizer que o olho do animal piscara por duas vezes, como se quisesse se certificar ser aquele corpo sem cabeça o seu corpo.

A equipe atordoada se perguntaria em silêncio: como extrair tal voracidade de um homem que apenas finge? Como, se não degolá-lo de verdade? O falso torturador parado diante do falso torturado: se olham pelos olhos dos personagens.

Página 15 do roteiro: abertura da imagem revelando o set vazio. Monólogo final.



Corta! 


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