Ninguém
na sala branca ,
apenas cadeira e mesa . A lâmpada acesa
ilumina ninguém : patético
brilho perdido por
sobre as coisas
frias e inanimadas. A fumaça de um cigarro deveria ser
bafejada no cone que
orna a lâmpada , para
magicamente tornar o ambiente
pesado, antes do “OK, gravando”.
O close
retiraria dos olhos do ator
o sumo da dor
que ele
deveria fingir sentir ,
sentado na cadeira que
está amputada de seu complemento humano .
O script
dava conta de um
suspiro que
moveria a fumaça como
um soco ,
e salientava que haveria de ser um som não compreensível,
ainda que
sugerisse um nome
de mulher .
Ninguém na cadeira. Ninguém na
sala. A câmera – se estivesse ligada – captaria apenas
mesa , cadeira
e lâmpada . O ator ,
nesse exato instante ,
se tudo estivesse dentro
do horário previsto ,
esmagaria o cigarro no cinzeiro com a
fúria. Um close ampliaria o simbolismo mostrando o dedo
(do torturador) subjugando uma coisa mínima e frágil. Depois ,
choraria. Quase em
segredo , choraria (outro close faria
mais uma vez o serviço).
Anotações no canto
da página do roteiro davam conta de dicas para melhor ilustrar a cena . A
lápis (canto superior esquerdo) se lê: “lágrimas
que se sucedem quase
que metodicamente, entrecortadas violentamente pelos
fios duros
da barba que
brotava na cara, como espinhos ”. Por aqui haveria um
corte . A queda da lágrima deveria ser
acompanhada pela câmera ,
até que
o chão a recebesse como
a um suicida
do décimo quinto
andar . Outro corte .
Voltamos – página dez – aos olhos ainda
secos. A câmera observa um deles (o olho
do torturador) de tal forma
que o torna
um espelho
por onde
reflete uma figura que adentra pela única porta – o
torturado seria introduzido assim na sala (o reflexo nos olhos secos do
torturador). Havia um quê de poesia
nessas linhas do scripit, que evocavam belezas
sublimes sobre
como as unhas
arrancadas eram maleáveis (mas isso jpa se encontra no final da página 13,
início da página 14): metáforas
poderosas estão encravadas aqui , página 13, por exemplo: “a sua
voz entortava de tal
forma que
lembrava o canto de uma fera
descontrolada”: a voz faz perguntas absurdas, exige a confissão.
A câmera
deveria enfurecer-se, postar-se nervosa ,
como se a tortura
ocorresse em seu
interior eletrônico, e não no homem que
deveria estar sentado na cadeira, iluminado por uma lâmpada fria, coberta de fumaça.
O cinegrafista
deveria sentir nos
próprios calcanhares
os choques elétricos
que eram falsamente
aplicados nos calcanhares
do homem amarrado, que se não fosse o atraso para iniciar as filmagens, estaria
sentado na cadeira , retorcendo o corpo como um porco
esfaqueado.
Se tudo estivesse ocorrendo como o
combinado, e o atraso não fosse uma realidade para as filmagens terem se
iniciado, o diretor haveria de interferir no ocorrido, perguntar
se alguém já
havia presenciado uma degola de frango . Dizer que na infância
vira uma pobre
galinha correr
sem cabeça
por um
minuto inteiro ,
o corpo sacolejado por
estranhos espasmos
que não
eram enviados pelo
cérebro; descreveria como certa vez viu a máquina
(o corpo da galinha) lentamente se
desfalecendo, pena a pena se eriçando.
Empolgado, o diretor haveria de dizer que o olho do
animal piscara por duas vezes , como se
quisesse se certificar ser
aquele corpo
sem cabeça
o seu corpo .
A equipe
atordoada se perguntaria em silêncio : como extrair tal voracidade de um homem que apenas finge? Como ,
se não degolá-lo de verdade ?
O falso torturador parado diante do falso torturado: se olham pelos olhos dos
personagens.
Página 15 do roteiro :
abertura da imagem
revelando o set vazio .
Monólogo final .
Corta!
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